Maria Bethânia, entre poesia e candomblé
- Paulo Pereira de Araujo
- há 10 horas
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A força da voz e do silêncio
Quem é Maria Bethânia? A pergunta deveria soar quase como uma heresia. É a própria voz da Bahia, um timbre que vem misturado com sal, com vento de mar aberto e com o cheiro doce das rezas de terreiro. É a irmã de Caetano, sim, mas nunca foi “a irmã de Caetano”. Foi, desde o início, Maria Bethânia, dona de uma presença tão avassaladora que transformava até o silêncio em espetáculo.
Quando subiu pela primeira vez ao palco, em 1965, pra cantar Carcará, não foi apenas uma estreia: foi um batismo. Aquele grito agreste rasgou o Rio de Janeiro como se fosse uma faca afiada vinda do sertão. E desde então ela nunca mais desceu do altar que ergueu para si mesma, um altar feito de poesia, de fé e de candomblé.
Bethânia não canta: encarna. O que há de curioso é que sua carreira, longe de ser uma sucessão de hits, é um longo ritual de consagração. Transformou shows em liturgias, discos em livros de oração. Cantou Chico, Gil, Caetano, Vinicius, mas também rezou Castro Alves, Fernando Pessoa, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Porque ela sempre soube que música não é só melodia, é palavra. Palavra que corta, que salva, que embriaga.
E o Brasil, tão acostumado a banalizar seus ídolos, não conseguiu banalizar Maria Bethânia. O tempo tentou, mas desistiu. Hoje, aos oitenta anos, ela continua de pé, com a mesma postura de sacerdotisa: cada entrada em palco é um acontecimento, cada canção, uma oferenda. Não há mais Carcará, mas há a ternura grave de quem atravessou décadas sem ceder à pressa, sem se transformar em caricatura.
Maria Bethânia é também um exemplo raro de coerência. Enquanto muitos artistas surfaram modismos pra sobreviver, ela permaneceu fiel ao seu eixo: a tradição afro-brasileira, a poesia, a devoção à palavra. Suas interpretações de Caymmi e Jobim têm a leveza de um barco à vela; suas leituras de poemas soam como se fossem revelações sagradas.
Maria Bethânia é a prova de que a música pode ser maior do que a própria música. É a lembrança viva de que a cultura brasileira tem raízes profundas e não se resume a refrões descartáveis. É a sacerdotisa que ainda nos lembra que cantar também é rezar. Enquanto viver, Maria Bethânia, permanecerá sendo. E quando, um dia, encontrar a Senhora Derradeira, continuará a ser no eco de sua voz, grave, serena, indomável, que ainda ressoará nos ouvidos do Brasil.
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