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Ele bebe, mas disfarça com café forte

  • Foto do escritor: Paulo Pereira de Araujo
    Paulo Pereira de Araujo
  • há 3 dias
  • 2 min de leitura

Atualizado: há 23 horas


Alcoolismo, o lobo disfarçado de ovelha


Tenho um amigo, idoso como eu, talvez até mais gasto, que anda bebendo como se a vida viesse em garrafas. Não daquelas caras, de rótulo francês e promessas florais, mas as que só prometem esquecimento. A bebida virou a bengala invisível dele. Ele disfarça bem. Ri, fala difícil, ainda escreve coisas que ninguém vai ler, mas eu noto o tremor leve nas mãos, o atraso nas respostas, a tristeza que pinga no copo mesmo quando ele tenta brindar.


Às vezes eu o visito, ele diz que não quer nada de bebida, além de um café bem forte, mas seus olhos entregam, ele quer tudo. Quer dormir sem pesadelos, lembrar sem dor, esquecer sem culpa. Não sei se é saudade, fracasso ou só o corpo cobrando a conta de décadas. Só sei que ele tá se apagando devagar, como vela esquecida em sala vazia.


Já pensei em intervir. Levar um folheto, uma bronca, uma ternura. Mas ele é daqueles que jogam fora a boia só porque não gostam de nadar com testemunhas. Prefere afundar sozinho, em silêncio, sem plateia. Diz que tá bem, mas sua boca treme quando ele fala. Outro dia perguntou se eu me lembrava de uma conversa que nunca tivemos. É assim que o álcool apaga: primeiro as horas, depois os dias e por fim a pessoa.


Eu fico assistindo e tentando ajudar. Porque ele não aceita ajuda, conselhos, afeto. Só aceita o silêncio e, com sorte, como já falei, um café forte. Nessas horas, olho pro Botox, meu cachorro, que me encara com a fidelidade dos que já entenderam tudo. E penso que talvez a amizade seja isso: sentar-se ao lado do abismo do outro e não deixar que ele pule. Nem hoje, nem amanhã ֎


 

 
 
 

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