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Budismo – raciocínio filosófico e transcendência

Atualizado: 17 de nov. de 2023

Na postagem anterior apresentamos o budismo como religião. Agora trataremos da filosofia budista. O filosofar budista, assim como acontece com algumas das propostas filosóficas ocidentais, é um processo que tem a finalidade explícita de transformar aqueles que se dedicam a tal atividade. Muito embora a filosofia budista seja apenas uma parte desse universo, algumas vezes ela se funde tão completamente a esse todo mais abrangente, que é difícil separá-los.


No entanto, não podemos esquecer que, dentro do contexto escolástico em que a filosofia budista é apresentada, particularmente no universo tibetano, a fé é tida como algo secundário, dado que o desenvolvimento da sabedoria é a meta principal dessa tradição. Ainda que por vezes possamos falar em budismo e filosofia budista de forma semelhante, o que poderia fazer com que alguns acreditassem que apenas a "fé" estaria envolvida em ambos os casos, é justamente o contrário. O que aproxima as duas coisas, é a sabedoria e o questionamento crítico que orienta tanto o budismo quanto a sua filosofia.


A filosofia budista refere-se às investigações filosóficas e sistemas de investigação que se desenvolveram entre várias escolas budistas na Índia após o Parinirvana do Buda (estado de nirvana profundo e final, alcançado após a morte do corpo físico, depois de alcançada a iluminação) e em seguida se espalharam por toda a Ásia.


O caminho budista combina raciocínio filosófico e meditação. As tradições budistas apresentam uma infinidade de caminhos para a libertação. Pensadores budistas na Índia e posteriormente no leste da Ásia abordaram tópicos tão variados quanto fenomenologia, ética, ontologia, epistemologia, lógica, filosofia do tempo e metafísica.



É possível unir pensamento oriental e ocidental?


Em entrevista à Revista do Instituto Humanitas Unisinos, o historiador e filósofo André Bueno, diz que, para falar daquilo que, no Ocidente, é chamado de “religião”, é necessário um conjunto extenso de ressalvas em relação aos pensares e crenças do mundo asiático que é vasto e multifacetado. Tentar criar qualquer ideia de um “pensamento oriental” é tão falso e perigoso quanto dizer que há um “pensamento ocidental”.


As tais diferenças que separariam “filosofia” ou “ciência” de “religião” muitas vezes não são encontradas. No entanto, quando os ocidentais leem Santo Agostinho ou discutem a pesquisa com embriões humanos tendo como referência a crença na vida e em Deus, essas classificações também não fazem muito sentido para os orientais. Mesmo que um olhar sobre a Ásia traga um fantástico espelho cultural, no qual os sentidos pareçam inversos, são encontrados diversos pontos de semelhança.


André prefere dizer que o budismo é um movimento, e se fosse classificá-lo de acordo com um critério ocidental, estaria inclinado a chamá-lo de filosofia. Ele acredita que o problema é que uma religião, tal como entendemos, tem um clero, um credo e uma liturgia. Os budistas têm cleros e liturgias, mas não tem um credo definido.


Suas principais correntes são a theravada, detentora do budismo mais antigo e tradicional que inclui a dúvida na existência de Deus ou dos deuses; mahayana, defende que podem existir Deus ou deuses, de acordo com cada escola e vajrayana, constitui o budismo tibetano e diz que se você acredita neles, os deuses podem existir.


Essas definições são mais do que suficientes para demonstrar que o budismo está bem distante de ser uma “religião” tal como concebemos. Por outro lado, o budismo é um fenômeno de características profundamente religiosas, e como tal não pode ser ignorado. Um dos seus elementos mais empolgantes é a noção de liberdade espiritual aberta e irrestrita. Em linhas gerais, ele não trata as pessoas como culpadas de pecados ou como vítimas do destino. A opção pela liberdade é extremamente pessoal.


Fusão da filosofia oriental e ocidental


Para André Bueno qualquer fusão implica na perda de parte da sua identidade original. Essas fusões não devem ser temidas e sim estimuladas. Por que manter identidades antigas e desgastadas, se elas já não nos servem mais? Mesmo no caso chinês, onde algumas coisas funcionam há séculos, existiram outros aspectos de sua cultura que se foram com o tempo, porque a mudança é inevitável.


Podemos apenas escolher se ela será feita de modo paulatino ou se ocorrerá de modo violento depois das postergações irresponsáveis. Ele considera maravilhosa a experiência que está sendo feita no Brasil. Temos uma grande leva de descendentes europeus, capitalizados em linhas gerais pela cultura portuguesa – no entanto, quase metade da população trouxe as contribuições da África para a nossa cultura, e devemos contar ainda com a presença indígena, tão massacrada, mas tão vital para a conquista da terra.


Essa sim é a construção de uma nova riqueza cultural, de uma fusão fantástica com possibilidades inimagináveis, se a levarmos para o campo do pensamento. Devemos voltar nossos olhares também para a Ásia, pois ela já faz parte de nossa vida cotidiana por meio de milhares de produtos e tecnologias que utilizamos. Falta-nos, pois, compreender como eles pensam, e disso tirar lições que nos sejam proveitosas.



Em linhas gerais, o budismo se mescla com outras tradições asiáticas em seu modo de agir e debater suas propostas, se destacando apenas por ação social e proselitismo (intento ou empenho de converter pessoas, ou determinados grupos, a uma determinada ideia ou religião, ou conseguir adeptos via instrução oral). Tanto na Índia quanto na China ou Japão, o budismo foi recebido como uma opção de pensamento.


O budismo nasce de uma insatisfação social e intelectual com o mundo indiano tradicional. Um príncipe abençoado, Sidarta Gautama, descobre lá pelos idos do século VI a.C. que a realidade não é tal como parece. Há fome, doença, velhice e morte; mas há, também, a sabedoria, meio pelo qual podemos nos livrar de um repetitivo ciclo de renascimentos.


Depois de tentar métodos diferentes de meditação, ele descobre um novo caminho, mais equilibrado, menos exigente e liberal, que o torna o iluminado, o Buda. O budismo trouxe consigo uma série de elementos daquilo que é chamado hinduísmo, tais como a questão da reencarnação, dos deuses, da meditação etc. Por que o hinduísmo não foi para além do mundo indiano? O que Buda trouxe de diferente para este mundo? Primeiramente, o budismo inovou quando ignorou a questão das castas.


A transcendência ao alcance de todos


Se para o hinduísmo é fundamental a figura do brâmane, aquele que por nascimento está destinado à religião e ao topo da sociedade tradicional, para os budistas, a libertação da alma é um potencial humano e se é humano, está em todos. Todos poderiam se libertar da reencarnação! Isso era uma novidade excitante na época, e contrariava seriamente a elite da sociedade.


Como Buda havia sido um príncipe, conquistou ainda mais autoridade, por ter abandonado todas as vantagens da sua posição social. Sendo o budismo um movimento que nasce como uma libertação espiritual – mas também, é importante frisar, social – o segundo passo foi fazer algo diferente do que as religiões da época faziam: pregar.

Gautama Buda cercado por seguidores, de

uma aquarela birmanesa do século XVIII


Sim, o budismo é, provavelmente, o primeiro movimento desse gênero a ser proselitista, e seus missionários começaram suas andanças pela Índia a fim de espalhar a boa nova: a transcendência ao alcance de todos.


Ideia de “causas e condições”


A questão fundamental é: como libertar-se? Os discursos de origem do universo são, em geral, uma herança dos primeiros tempos das religiões, e serviam para a legitimação de uma ideologia igualmente religiosa. Por essa razão, o budismo pouco se preocupou com a origem, mas sim, em como resolver as coisas agora. Uma das linhas budistas defende que a existência ocorre tal como um filme de cinema, em quadros distintos que, interligados, geram o movimento. Se aceitarmos essa proposição, a criação ocorre todo o tempo, em “flashes” imperceptíveis, e o nirvana é a cessação desse movimento!


Essa é uma questão bem complicada e abrangente. A literatura budista é vastíssima, e, por essa razão, estudar o budismo é, antes de tudo, adotar interpretação de uma linhagem de mestres. Por outro lado, o objetivo final dessas buscas – o nirvana – significa exatamente a compreensão dessas coisas. O que os budistas querem dizer com isso é que “não importa neste momento como tudo surgiu, mas sim, a iluminação. Depois disso, você compreenderá tudo”.


Orientação filosófica


A filosofia na Índia visava principalmente à libertação espiritual e tinha objetivos soteriológicos (a soteriologia é uma parte da teologia que estuda a salvação da humanidade). Em seu estudo da filosofia budista indiana Mādhyamaka, Peter Della Santina (c. 1950-2006), tradutor e autor de vários livros sobre o budismo, escreveu:

Em primeiro lugar, a atenção deve-se voltar para o fato de que os sistemas filosóficos na Índia raramente eram, ou nunca, puramente especulativos ou descritivos.


Praticamente todos os grandes sistemas filosóficos da Índia: Sāṅkhya, Advaitavedānta, Mādhyamaka e assim por diante, estavam preocupados em fornecer um meio para a libertação ou salvação. Era uma suposição tácita com esses sistemas que se sua filosofia fosse corretamente compreendida e assimilada, um estado incondicionado livre de sofrimento e limitação poderia ser alcançado. [...] Se esse fato é negligenciado, como muitas vezes acontece como resultado da propensão engendrada pela filosofia ocidental formal para considerar o empreendimento filosófico como puramente descritivo, o real significado do indiano e a filosofia budista será perdido.


Da linhagem


Outra característica muito específica da filosofia budista, que envolve as tradições de transmissão de conhecimento, é a chamada linhagem. Quando falamos em linhagem, referimo-nos tanto àquilo que é transmitido, quanto às pessoas envolvidas nessa transmissão, a forma como isso ocorre, o local e o momento em que isso se dá.


As linhagens são particularmente importantes, pois se um determinado conceito não for transmitido e recebido de forma clara e precisa, evitando ao máximo as inúmeras interferências, deturpações e filtros decorrentes da passagem da informação de uma mente a outra, após algumas gerações, tanto os ensinamentos que foram passados há mais de 2.500 anos, quanto aqueles que estão sendo transmitidos em nossos dias, estariam completamente distorcidos.



Por isso, dentro desse contexto de linhagem, particularmente de uma linhagem oral ininterrupta, tão significativo no universo do pensamento budista indo-tibetano, é fundamental sabermos quem foi o autor de determinado texto, para quem foi passado, por quantas gerações foi passado, como e onde isso aconteceu, sendo indispensável a transmissão direta e presencial de um para o outro.


Esse aspecto, quase que incompreensível para grande parte das tradições filosóficas tais quais estabelecidas no Ocidente, e mesmo em outros contextos no Oriente, pode parecer "alienígena" para a maioria de nós, principalmente por não termos sido ensinados a nos relacionar assim com os textos que consultamos, lemos e interpretamos; mas, dentro de uma perspectiva estritamente lógica, parece-nos quase que "natural" constatar que quanto maior for a proximidade que tivermos com o autor do texto, mais fácil será compreender aquilo que ele tenta expressar, particularmente quando se trata de uma compreensão não apenas intelectual, mas também baseada na experiência.


Como parece natural, é comum termos maior afinidade com uma determinada forma de pensar e nos seja mais fácil "entender" alguns autores do que outros, justamente por esse processo de empatia, mas até que ponto podemos ter certeza de que aquilo que estamos lendo e reinterpretando em nossas mentes está minimamente próximo daquilo que o "outro" tentou transmitir? Isso não quer dizer que temos que simplesmente receber a informação da forma mais acurada possível, e aceitá-la sem questionar, muito pelo contrário, como foi dito, a análise e a contemplação são aspectos sine qua non do processo.


Seria muito bom se pudéssemos ter acesso direto a Heidegger, Kant, Nietzsche e assim por diante, se pudéssemos nos sentar com eles, esclarecer dúvidas, fazer as perguntas que quiséssemos sem "intermediários". Mas, infelizmente, não podemos. Nem sequer podemos ter acesso a "detentores" diretos daquela forma de pensar, de alunos diretos que absorveram e se identificaram profundamente com o que lhes havia sido exposto de tal forma que seria quase como se tivesse sido elaborado por eles mesmos.


Como se sabe, o conhecimento é construído a partir de um entendimento anterior, e não podemos eliminar as nossas acepções prévias engendradas pela época em que nascemos, o contexto em que vivemos, as nossas circunstâncias pessoais etc.


Mas, quando estamos cientes das nossas próprias limitações, parece ser mais fácil entender diferenças tão profundas como a importância da linhagem em uma tradição filosófica, lembrando que pessoas extremamente competentes, lúcidas e bem-dotadas intelectualmente, efetivamente se engajaram nessas atividades e mantiveram tal tradição, e que elas devem ter motivos razoáveis para se comportarem dessa forma.


Sendo assim, talvez esse aspecto por vezes negligenciado entre os acadêmicos brasileiros pudesse ser também levado em consideração, e não deixado de lado como se fosse apenas uma "parte indesejável" de um universo que se pretende investigar.


Das qualidades


Outro aspecto fundamental, característico do fazer filosófico budista é a ética comportamental, frequentemente negligenciada por parte dos pesquisadores. A conduta do filósofo é colocada em pauta para que se possa avaliar sua qualidade. Para entender melhor como isso funciona, pode-se tomar o exemplo dos pré-requisitos necessários para que um erudito se tornasse diretor de uma universidade budista, como Nālandā.


A universidade e mosteiro budista de Nalanda é considerada por historiadores a primeira universidade residencial planejada do mundo, cujas inscrições e registros indicam um sistema hierarquizado do campus que abrigava cerca de 10.000 estudantes e 2.000 professores. Foi um importante centro de aprendizado de filosofia na Índia desde o século V d.C. até o século XII. (Wikipedia).



De acordo com Jamgön Kongtrül (foi um estudioso budista tibetano, poeta, artista, médico, tertön e polímata) para que um filósofo e erudito ocupasse a posição de diretor-geral da Universidade, como foi o caso de Śāntarakṣita (importante e influente filósofo budista indiano, da tradição budista tibetana), era necessário ter três qualidades fundamentais: ser extremamente erudito, ter uma conduta impecável e ser uma pessoa agradável e de "bom caráter". Mas o que significa exatamente a última condição?


Dentro da estrutura filosófica do budismo, além do conhecimento, como forma de transformação, é necessário que a pessoa que ensina e escreve sobre tal filosofia tenha uma compreensão plena daquilo que diz, além de possuir as mesmas qualidades por ela apresentadas, o que em tibetano é chamado rtogs pa. Essa palavra é relativamente complicada de ser traduzida, mas o sentido mais próximo seria "tornar-se completamente ciente" de alguma coisa, "compreender clara e plenamente", ou simplesmente "entender".


Se optarmos simplesmente por "compreender", isso poderia nos conduzir a um entendimento muito "simplista" da palavra, permitindo interpretações errôneas que pudessem levar a uma compreensão desse termo em seu aspecto meramente intelectual, o que não é sempre condizente com o vocábulo empregado em tibetano e a importância dele dentro da filosofia, na qual a teoria também é "compreendida" e "realizada", na prática.


Voltando à nossa tentativa de entender as qualidades necessárias a um filósofo budista, uma vez que não somos capazes de saber o que efetivamente acontece na mente de outras pessoas - neste caso, se têm o nível de "rtogs pa" (uma compreensão plena), podemos ter acesso apenas àquilo que nos chega diretamente por meio dos sentidos e da cognição, a única forma possível de se tentar saber se a pessoa era realmente um filósofo com essa qualidade de "realização/compreensão" seria se ela efetivamente se comportasse como tal.



Por esse motivo, era tão importante a questão do caráter/conduta daquele que ocupava o principal posto da Universidade. Dentro dos parâmetros da filosofia no Ocidente, e mesmo nas instituições universitárias, esse tipo de questão sequer é colocado, a não ser que se faça algo realmente algo "perverso", ou "fora da lei" e seja "descoberto". Mas, para nos aproximarmos do pensamento filosófico budista, de forma condizente com os seus próprios paradigmas, esse também é um aspecto fundamental, que não pode deixar de ser considerado quando se pensa na própria motivação do fazer filosófico.


Do dogmatismo


Em geral, os filósofos ocidentais proclamam-se como pensadores livres da necessidade de seguir qualquer doutrina previamente estabelecida para assim desenvolver as suas investigações, ao passo que, no caso da filosofia budista, haveria a necessidade de se seguir um determinado "cânone fixo e limitado" para que os posicionamentos dos filósofos fossem aceitos, o que a tornaria uma filosofia dogmática. Essa afirmação é duplamente questionável, tanto por parte da filosofia budista quanto da ocidental.


Quanto à filosofia ocidental contemporânea, por mais que idealmente o filósofo possa ter liberdade total para expressar os seus pensamentos, não é fácil apontar qualquer filósofo que efetivamente tenha elaborado uma linha de pensamento e a legitimado dentro da sua área ou mesmo de outras áreas do conhecimento, que não tenha se utilizado de muitos dos inúmeros referenciais previamente reconhecidos dentro do seu campo de investigação.


No caso da filosofia budista, muito embora a postura dos pensadores em relação à questão da autoridade dos textos seja bastante complexa, sem dúvida na maior parte dos casos se trabalha dentro das fronteiras de um universo textual no qual a opinião de filósofos do passado é relevante; mas daí a se afirmar que devido a esse fato a filosofia budista seja dogmática, seria um tanto quanto simplista, para não dizer ingênuo.


Como afirma o especialista mexicano Jose Ignacio Cabezón (2010), o cânone das escrituras budistas é tão rico e diverso que um pensador é capaz de encontrar autenticação textual para justificar praticamente qualquer ponto de vista que ele queira abraçar. Dentro desse contexto, em que uma determinada opinião pode ser apoiada ou combatida por fontes textuais igualmente válidas, tornar-se-á necessário aos acadêmicos procurarem outras formas para validarem os seus pontos de vista, como é o caso da argumentação lógica, amplamente difundida dentro dos moldes estabelecidos pela filosofia budista. Além disso, assim como os filósofos ocidentais, também os filósofos budistas criticam outros pensadores quando acham isso justificável, o que seria impossível se a filosofia budista fosse um simples dogmatismo.


Tsongkhapa, também conhecido como Je Rinpoche e Lobsang Drapka, fundou a escola Guelupa do budismo tibetano como uma reforma da antiga escola Kadampa, fundada por Atisha no século XI, bebeu das mais variadas fontes de tradição budista e trabalhou particularmente com os textos de Atisha, ao se dedicar à explicação dos dois níveis, "definitivo" e "provisório", das elaborações sobre a realidade tal qual ela é. Ele afirma que a questão sobre o que era uma visão definitiva ou provisória nos discursos de Buda não poderia ser estabelecida ao "confiarmos" exclusivamente nas escrituras; sendo que uma visão correta sobre a realidade só poderia ser estabelecida ao nos basearmos em um raciocínio e análise perfeitos (Cabezón, 2010).


Sendo assim, a afirmação de que a filosofia ocidental é absolutamente livre e a budista dogmática não é nada mais do que um posicionamento pouco condizente com a forma como ambas as filosofias se desenvolvem. Como se sabe, é impossível que nós, seres humanos, de qualquer nação, não sejamos nutridos e guiados por paradigmas inconscientes - ou mesmo conscientes - que estão vinculados aos modelos culturais, históricos e contextuais que moldam, ao longo dos tempos, a nossa maneira de pensar.


Dessa forma, ambas as filosofias estão limitadas por esse condicionamento humano, que é geral, e não de uma cultura em particular.


O dogmatismo mataria a única razão de ser do filosofar budista, pois inviabilizaria toda e qualquer realização/compreensão que só se torna possível por um processo de investigação pessoal, capaz de cumprir o verdadeiro objetivo dessa filosofia, libertar-nos da ignorância inerente à existência cíclica.


Os ensinamentos devem ser confirmados pela análise lógica


Para os filósofos budistas indianos, os ensinamentos do Buda não deveriam ser tomados apenas pela fé, mas confirmados pela análise lógica (pramana) do mundo. Os primeiros textos budistas mencionam que uma pessoa se torna um seguidor dos ensinamentos do Buda depois de ponderá-los com sabedoria. O treinamento gradual também exige que um discípulo "investigue" (upaparikhati) e "escrutinize" (tuleti) os ensinamentos.


Buda também esperava que seus discípulos o abordassem como um professor de maneira crítica e examinassem suas ações e palavras, como mostrado no Vīmaṃsaka Sutta (47º discurso do chinês Taisho Tripitaka dentro de Majjhima Nikaya do Cânone Pāli no budismo theravada e paralelo ao Madhyama Agama), incentivando a pôr a autoridade de professores espirituais em inquérito a partir do resultado de suas vivências e exemplos e a questionar a autoridade das palavras de mestres (suas próprias inclusive), escrituras e tradições – até mesmo a própria lógica, raciocínios e deduções, como no Kālama-sutta, um discurso do Buda contido no Aṅguttara Nikaya do Tipiṭaka.



A relação do eu é com seu próprio eu


De acordo com André Bueno, o budismo foi bem acolhido na China pela população em geral, mas os intelectuais chineses sempre mantiveram uma grande desconfiança em relação a ele. Os chineses tinham uma tradição milenar de cultura antes do budismo chegar em suas terras; na China dá-se, até os dias de hoje, um valor incomensurável ao estudo da história, da literatura e da filosofia. Assim, quando os missionários indianos chegaram, eles conquistaram o coração da população mais pobre, mas convenceram pouquíssimos intelectuais chineses do valor de suas propostas.


E qual era o cerne da crítica chinesa aos budistas? Além do receio desse pensamento estrangeiro afetar as estruturas culturais e sociais dessa civilização, que já estavam estabelecidas há muito tempo, os pensadores chineses propuseram algumas questões bastante pertinentes aos budistas, como, por exemplo: se uma pessoa medita para alcançar a iluminação, ela não trabalha. Quem trabalha, sustenta o que vai se iluminar, mas ele mesmo não se ilumina. Ora, onde está a justiça nesta situação?


Isso significa, portanto, que aquele que se esforça no campo para favorecer o nirvana alheio nada conquista para si? E para aquele que medita, o egoísmo e a inação são um prêmio? Uma outra história cômica ilustra bem isso: um mestre budista quis, uma vez, ensinar a um sábio chinês o que era meditação. Ele lhe explicou que a meditação consistia em ficar parado, com os olhos fechados, alheio ao mundo e esquecendo-se de si mesmo. O sábio lhe respondeu: “eu já faço isso todas as noites, quando durmo. Para que preciso fazer mais”?


O que vemos, portanto, é que o budismo, para sobreviver dentro da China, precisou adaptar-se à cultura local. Embora tenha proposto problemas interessantes para a filosofia chinesa, o seu espaço consolidou-se justamente nesse terreno que chamamos de “religioso”, e depois de algum tempo, seu principal desafio foi o de disputar crentes com os taoístas. No mais, André afirma não estar nem um pouco convicto de que o budismo é o único movimento que tenha uma relação especial de “eu comigo mesmo”.


Salvo algumas escolas específicas, muitos budistas dedicam-se diariamente aos seus deuses, e entendem-se como partes atuantes de um cosmos absolutamente interligado. Talvez possamos precisar que os budistas defendem sim uma superação individual como fator indispensável de iluminação. Mas será isso tão diferente do que alguns de nós ocidentais acreditamos?


Octavio Paz Lozano, poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano, notabilizado, principalmente, por seu trabalho prático e teórico no campo da poesia moderna ou de vanguarda, gostava de dizer que ao mundo só faltou o encontro fértil entre o budismo e o cristianismo. O budismo poderia ensinar técnicas mais efetivas de meditar, um pouco mais de tolerância e um modo de vida mais responsável e menos duro com os erros humanos.


O cristianismo antigo, contudo, tinha uma mensagem de esperança e libertação muito especial, e já nasceu, igualmente, fadado a ser multiétnico, transcultural e igualitário. A preocupação humana do cristianismo original, de Jesus a São Francisco, é o cerne de um discurso de caridade e apoio muitas vezes desconhecido em alguns recantos da Ásia. E o que isso tem a ver com a relação “eu comigo mesmo”?


Um budismo meditativo como o Zen, por exemplo, pode ensinar a descoberta por si mesmo, mas também pode levar ao egoísmo; o cristianismo pode apegar-se a uma mensagem dogmática radical, fundamentalista, que faz o indivíduo esquecer-se de si mesmo, o que pode torná-lo tanto um autômato desprovido de arbítrio quanto um santo ativo e reformador.


O encontro desses pensares sempre leva a algum tipo de atrito, mas os resultados podem ser saudáveis. O raciocínio é simples, mas verdadeiro: podemos utilizar o melhor de ambos em proveito de uma consciência renovada, da construção de uma tolerância maior, e de uma individualidade mais sadia. O mais difícil, contudo, é ter uma consciência nítida sobre o que estamos fazendo.


Então, se fizermos uma tentativa real de aproximação, é bem possível que algumas experiências significativas pudessem ser extraídas disso; do contrário, seremos continuamente reféns dos fundamentalistas ou dos falsários, e nisso o diálogo religioso ficará inevitavelmente prejudicado.


Qual é o significado do silêncio sobre Deus no budismo?


Dependendo da tradição budista na qual o praticante se insere, André Bueno diz que há um grande cuidado em afirmar a existência de Deus ou de qualquer outra força divina. Talvez sejamos tão ínfimos diante dela que apelar a ela é perda de tempo e de energia. Algumas teorias chinesas defendem que o universo, se for infinito, sempre existiu – tanto em tempo como em constituição.


O fenômeno da criação, tanto quanto do fim de tudo, pertencem ao finito, e não ao infinito. Se Deus for infinito, então a criação do mundo pode ser apenas um momento nisso tudo. Diante da magnitude da questão, os intelectuais chineses apelaram para respostas diversas, que vão desde teorias físicas até mesmo o desinteresse pelo problema.



Quanto aos budistas, eles resolveram encarar o problema de dois modos: um deles foi a criação da escola Chan (que no Japão, viria a ser o Zen), que consiste em dedicar-se a si mesmo, buscando uma conexão interior e integradora com o cosmos, a fim de dar cabo da questão; o outro foi investir numa religiosidade popular, repleta de deuses e mitos, que facilitam o diálogo com o povo mais humilde, simplificando o problema da libertação por meio de um discurso que privilegia a execução de boas ações como forma de libertação espiritual.


Pode parecer estranho que existam duas tendências tão opostas, e a aceitação de sua coexistência seja uma grande hipocrisia: no entanto, se as pessoas podem se libertar por dois meios diferentes, então, a questão fundamental é de como o indivíduo encontra o método correto para libertar-se. O resto é detalhe.


Entidades irreais e a atuação no vazio


Quanto ao “atuar no vazio”, isso diz respeito, dentro do pensamento chinês tradicional, à capacidade do sábio se deslocar de modo discreto, harmônico e necessário diante do desenrolar da vida. Dado que não podemos provar a existência de uma vida após a morte, ou ainda, se há reencarnação, os chineses – principalmente os intelectuais confucionistas, e em certa medida, os pensadores daoístas – acreditavam que a sabedoria correta no agir traria a felicidade aqui, agora, na imanência. Isso significa compreender os mecanismos pelos quais as coisas operam, a sua ecologia funcional, e, com isso, evitar os atritos e o desgaste inútil.


Por isso, o sábio não atua de modo direto, ele sabe adaptar-se ao movimento, sabe conduzir sem forçar, sabe promover sem impor, e assim por diante. Se ele consegue isso, ele “atua no vazio”, realizando as coisas de modo “invisível”. Ele só se manifesta quando necessário, tendo em vista que os seus conhecimentos geram, inevitavelmente, ações e reações.


Essa concepção é bastante diferente do “vazio budista”, conceito importado da Índia que pressupunha que somos entidades “irreais”. Nessa visão, se tudo é composto por partículas ínfimas sem um caráter distinto, então, nós mesmos somos uma grande massa de coisas indistintas! A busca desse sentido do que somos, encontrada num esvaziamento da noção de que “sou algo”, é o que traria a libertação.


Mas lembremos, sempre: tais definições, como aqui apresentadas, são bastante gerais, e costumam ser temas de livros inteiros. O que podemos é instigar um pouco o debate sobre o tema, tendo em vista que temos muito poucos especialistas no assunto, mas muitos iniciantes dogmáticos prontos a discordar da primeira sílaba de cada uma dessas frases.



Transcendência


Outra possível razão pela qual o Buda se recusou a se envolver na metafísica é que ele via a Realidade Última e o Nirvana como desprovidos de mediação sensorial e concepção. Portanto, a própria linguagem é a priori inadequada para explicá-lo.


Assim, o silêncio do Buda não indica misologia (ódio, aversão à lógica, ao raciocínio lógico, ao discurso lógico, à razão, à arte do raciocínio) ou desdém pela filosofia. Em vez disso, indica que ele via as respostas a essas perguntas como incompreensíveis para os não iluminados. O surgimento dependente fornece uma estrutura para análise da realidade que não é baseada em suposições metafísicas sobre existência ou não existência, mas sim na cognição direta dos fenômenos conforme são apresentados à mente na meditação.


Nos seus primeiros textos Buda descreve o Darma (no sentido de "verdade") como "além do raciocínio" ou "transcendendo a lógica", no sentido de que o raciocínio é um aspecto introduzido subjetivamente do modo como os humanos não iluminados percebem as coisas, e é a estrutura conceitual que sustenta seu processo cognitivo, em vez de uma característica das coisas como elas realmente são.


Nesse contexto, ir "além do raciocínio" significa penetrar na natureza do raciocínio a partir de dentro e remover as causas de se experimentar qualquer estresse futuro como resultado dele, em vez de funcionar fora do sistema na sua totalidade.

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