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O Atormentado Diário de Carolina Maria de Jesus

Atualizado: 5 de nov.


Ela tinha tudo para não ser escritora, mas foi!


Autora de Quarto de Despejo, livro em forma de diário que conta sua história na Favela Canindé, Carolina Maria de Jesus tinha tudo para não ser escritora, mas foi! O livro é repleto de luta, superação e sofrimento, por ser o relato de uma mulher, negra, mãe solteira, semianalfabeta e favelada, no Brasil do século XX.



Carolina nasceu em 14 de março de 1914, em uma comunidade rural de Sacramento, Minas Gerais. Filha de pais analfabetos, conseguiu frequentar o colégio Alan Kardec graças a Maria Leite Monteiro de Barros, uma das patroas de sua mãe. Estudou apenas dois anos, o suficiente para ser alfabetizada e tomar gosto pela leitura.


Em sua casa não havia livros, mas ela recorria a uma vizinha. Foi assim que leu o seu primeiro livro, A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães. Em 1924, sua família se mudou para a cidade de Lageado (MG). Trabalharam na roça até1927, quando retornaram a Sacramento.


De Sacramento a São Paulo

Ainda em Sacramento, ela e sua mãe foram acusadas de roubo. A mãe ficou presa até descobrirem que não houve roubo algum. Esse fato foi decisivo para ela deixar Sacramento rumo à cidade de São Paulo.


Em 1947, ela foi morar na Favela Canindé, na zona norte da cidade, onde hoje fica o estádio da Portuguesa. Nessa época, teve início a modernização da cidade e o surgimento das primeiras favelas.


Carolina trabalhou como empregada doméstica na casa de Euryclides de Jesus Zerbini, quinto cirurgião do mundo e o primeiro da América Latina e do Brasil a realizar um transplante de coração. Os momentos de folga ela passava na biblioteca da casa.


Tempos depois ela ficou grávida sem ser casada e passou a viver de pegar papel na rua, separando os melhores para a sua escrita diária. Neles, ela escrevia sobre seu dia a dia na favela.


Em 1958, o jornalista Audálio Dantas foi à favela do Canindé fazer uma matéria e encontrou Carolina. Ela lhe mostrou o seu diário e ele percebeu que já tinha tudo e muito mais o que falar sobre a favela.



Impressionado com a capacidade de expressão da escritora, ele resolveu ajudá-la a publicar seu primeiro e mais famoso livro. Apesar da pouca escolaridade, o conhecimento adquirido na escola foi o que lhe possibilitou escrever o livro que foi a alavanca de sua vida.


Alguns trechos dos cadernos foram publicados em uma reportagem no jornal Folha da Noite do dia 9 de maio de 1958. Outra parte saiu na revista O cruzeiro, no dia 20 de junho de 1959.


Publicado em agosto de 1960, pela editora Francisco Alves, Quarto de despejo – diário de uma favelada, organizado e revisado por Audálio, era uma reunião de cerca de 20 diários escritos de 15 de julho de 1955 a 01 de janeiro de 1960.



O jornalista garante que apenas editou o texto de modo a evitar muitas repetições e alterar questões de pontuação; de resto, o diário de Carolina foi publicado na íntegra. Foi um sucesso de vendas e de público porque lançou um olhar original da favela e sobre a favela.


Muito se questionou na época sobre a autenticidade do texto, que alguns atribuíram ao jornalista e não a ela. Muitos também reconheceram que a escrita conduzida com tanta veracidade só poderia ter sido elaborada por quem realmente tivesse vivenciado aquelas experiências.



O título do livro é atribuído à imagem que Carolina tinha da favela como um quarto de despejo. Seus moradores tinham sido colocados ali por ordem do governo. Moradores de rua foram despejados naquelas áreas que marcaram o início e a expansão das favelas na capital de São Paulo.


Mais de 100 mil livros foram vendidos no Brasil em apenas um ano (1960). Traduzido para treze idiomas, Carolina ganhou o mundo e foi comentada por grandes nomes da literatura brasileira como Manuel Bandeira, Raquel de Queiroz e Sérgio Milliet.


O sucesso de vendas representou sua saída da favela e a hostilidade dos moradores daquela comunidade, que se sentiram expostos por ela. Apesar de ter saído da pobreza, do dia para a noite, Carolina não conseguiu manter o dinheiro que ganhou e no final da vida voltou a passar por dificuldades financeiras.


A partir do segundo livro, Casa de alvenaria, com o subtítulo diário de uma ex-favelada, Carolina voltou, ao ostracismo. Ela enfrentou o preconceito de uma sociedade que, em grande parte, relacionava seu talento com a figura de Audálio — um homem branco e letrado. Entretanto, seus livros posteriores não alcançaram o sucesso e o lucro da sua primeira publicação e ela voltou a pegar papel na rua para sobreviver.


Carolina Maria de Jesus faleceu em 13 de fevereiro de 1977, aos 62 anos, em um sítio onde residia, na periferia de São Paulo, devido a uma insuficiência respiratória. Infelizmente, nessa época já estava esquecida do público e da mídia.


Deixou seus três filhos, frutos de relacionamentos com homens que não assumiram a paternidade: João José, José Carlos e Vera Eunice. A única ainda viva é a professora Vera Eunice, a caçula.


Quarto de Despejo também teve importante impacto social porque chamou a atenção para o problema das favelas, ainda embrionário no Brasil.


Foi uma oportunidade de se debater tópicos essenciais como o saneamento básico, a coleta de lixo, a água encanada, a fome, a miséria, ou seja, a vida em um espaço onde até então o poder público não havia chegado.


Obras

Seu último livro, Diário de Bitita – um Brasil para brasileiros, foi publicado primeiro na França pela Éditions Métailié, com o título de Journal de Bitita, e no Brasil em 1986.



Quarto de Despejo – Resumo e Análise

Rebeca Fuks, Doutora em estudos da cultura, faz um resumo e uma análise do livro que projetou Carolina Maria de Jesus. Apresento aqui uma síntese. O texto completo está no link no final da página.


"Quarto de Despejo é uma leitura dura, difícil, que expõe situações críticas de quem não teve a sorte de ter acesso a uma mínima qualidade de vida. Extremamente honesto e transparente, vemos na fala de Carolina a personificação de uma série de falas possíveis de outras mulheres que se encontram igualmente em uma situação social de abandono.


A redação de Carolina – a sintaxe do texto – por vezes foge ao português padrão e por vezes incorpora palavras rebuscadas que ela parece ter aprendido com as suas leituras. Em diversas entrevistas, ela se identificou como uma autodidata e disse que aprendeu a ler e a escrever com os cadernos e livros que recolhia das ruas.


Na entrada do dia 16 de julho de 1955, por exemplo, vemos uma passagem onde a mãe diz para os filhos que não há pão para o café da manhã. Convém observar o estilo da linguagem utilizada:



Em termos textuais vale sublinhar que há falhas como a ausência de acento (em água) e erros de concordância (comesse aparece no singular quando a autora se dirige aos filhos, no plural).


Carolina transparece o seu discurso oral e todas essas marcas na escrita ratificam o fato de ter sido efetivamente a autora do livro, com as limitações do português padrão de quem não frequentou integralmente a escola.


Quarto de despejo explora os meandros da vida dessa trabalhadora mulher e transmite a dura realidade de Carolina, o constante esforço contínuo para manter a família de pé sem passar maiores necessidades:



Superando a questão da escrita, vale sublinhar como no trecho acima, escrito com palavras simples e tom coloquial, Carolina lida com uma situação dificílima: não ser capaz de colocar pão à mesa pela manhã para os filhos.


Ao longo da escrita, ela sublinha que sabe a cor da fome – e ela seria amarela. A catadora teria visto o amarelo algumas vezes ao longo dos anos e era daquela sensação que mais tentava fugir.



Além de trabalhar para conseguir comprar comida, ela também recebia doações e buscava restos de alimento nas feiras e até no lixo quando era preciso. Ao invés de lidar com o pesar da cena de modo dramático e depressivo, a mãe é assertiva e escolhe seguir em frente encontrando uma solução provisória para o problema.


Por outro lado, inúmeras vezes ao longo do texto, a narradora se depara com a raiva, com o cansaço e com a revolta de não se sentir capaz de nutrir as necessidades básicas da família:



Se Carolina muitas vezes se sente vítima de preconceito por não ser casada, por outro lado agradece o fato de não ter um marido, que para muitas daquelas mulheres representa a figura do abusador.



Acima de tudo, Quarto de despejo é uma história de sofrimento e de resiliência, de como uma mulher lida com todas as dificuldades impostas pela vida e ainda consegue transformar em discurso a situação limite vivida.


História Preta


Este espaço é pequeno demais para abranger tudo, ou quase tudo, a respeito de Carolina Maria de Jesus, por isso complemento com os links no final do texto. Este post foi ao ar em janeiro de 2023. O bom da internet é que sempre podemos acrescentar ou retirar informações das postagens. Descobri o História Preta, podcast documental que tem por objetivo manter viva a memoria histórica da população negra no Brasil e no Mundo,  escrito, editado e publicado por Thiago André.


O História Preta produziu uma série com 10 episódios sobre Carolina Maria de Jesus.

Neles é possível ver o quanto foi difícil para ela enfrentar o preconceito e a dura realidade de ser uma mulher negra, mãe solteira e favelada (mesmo depois de já ter saído da favela) e, principalmente, uma best-seller que pode ter ofuscado autores brancos consagrados (e não consagrados), ou simplesmente incomodado muita gente acostumada com a negritude no porão.


No episódio 3.Poetisa Negra, Thiago André narra a prisão, ainda em Minas Gerais, de Carolina e sua mãe por motivo meramente racista. Elas não só ficaram presas como foram espancadas. A mãe dela teve um braço quebrado ao tentar defendê-la e permanceu na cadeia por alguns dias sem ajuda médica.


É um retrato sem anestesia do Brasil dos anos 1960 e 1970. Um Brasil bem diferente do Brasil da filósofa e escritora Djamila Ribeiro, mas nem por isso menos racista. Os links dos 10 episódios estão logo abaixo, ao final do texto.


Acervo no IMS – Instituto Moreira Salles


O Acervo Carolina Maria de Jesus chegou ao Instituto Moreira Salles em 2006. É formado apenas de arquivo com produção intelectual contendo dois cadernos manuscritos: um deles intitulado Um Brasil para os brasileiros: contos e poemas, e outra coletânea do mesmo gênero, sem título.



Na Biblioteca de Apoio ao arquivo de Carolina consta o filme Favela: a vida na pobreza. Inédito até 2014, foi gravado pela alemã Christa Gottmann-Elter em 1971, mas teria sido impedido de circular no Brasil do regime militar por seu caráter de denúncia social e econômica que contradizia a ideia de um país moderno que os militares passavam aos brasileiros.


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