Maria Firmina dos Reis - Entre a Escrita e o Apagamento
- Paulo Pereira de Araujo

- há 3 dias
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Atualizado: há 13 horas

Úrsula e o Direito de Narrar a Própria Dor
Maria Firmina dos Reis nasceu em 1822, no Maranhão, e morreu em 1917. Entre essas duas datas, escreveu um romance, poemas, contos, hinos, fundou uma escola mista e gratuita e defendeu, por escrito e por prática, a dignidade de pessoas que a sociedade brasileira preferia manter sem voz.
O dado mais revelador, porém, não está na cronologia, mas no intervalo de silêncio que se seguiu à sua obra. Durante décadas, Maria Firmina existiu mais como ausência do que como presença na história literária brasileira.
Úrsula, publicado em 1859, costuma ser apresentado como o primeiro romance brasileiro escrito por uma mulher e também como um dos primeiros relatos abolicionistas do país. Ambas as afirmações são corretas, mas insuficientes.
O que torna Úrsula um livro decisivo não é apenas o fato de ter sido escrito por uma mulher negra em pleno século XIX, mas a maneira como a autora desloca o olhar narrativo.
Pela primeira vez, personagens escravizados não aparecem apenas como pano de fundo moral, mas como sujeitos capazes de narrar a própria dor, a própria memória e a própria humanidade. Esse gesto, no Brasil oitocentista, não era trivial; era um ato de ruptura.
A literatura brasileira do período ainda se organizava a partir de modelos europeus, preocupada em formar uma identidade nacional que raramente incluía os corpos e as vozes da população escravizada. Maria Firmina escreve dentro dessas convenções, mas as tensiona.
O romance mantém a estrutura sentimental típica da época, porém insere nela um elemento que desestabiliza o leitor: o sofrimento dos escravizados não é um recurso retórico para exaltar a virtude dos brancos, mas uma experiência narrada de dentro. Essa escolha altera o eixo moral da obra.
Não é difícil compreender por que esse livro não encontrou lugar confortável no cânone literário. Maria Firmina não se encaixava em nenhuma das categorias que a crítica literária posterior utilizaria para organizar a literatura nacional.
Era mulher, negra, maranhense, professora, e não fazia parte dos círculos intelectuais do Rio de Janeiro. Além disso, sua escrita não servia plenamente aos projetos ideológicos do seu tempo nem aos do tempo seguinte. O resultado foi um apagamento histórico quase completo, corrigido apenas no final do século XX, quando seu nome começou a reaparecer em estudos acadêmicos e reedições tardias.
Mas reduzir Maria Firmina dos Reis à condição de precursora também é uma forma sutil de esvaziamento. Ela não escreveu apenas antes; escreveu contra. Contra a naturalização da escravidão, contra a exclusão educacional das mulheres, contra a ideia de que certos sujeitos não eram dignos de palavra escrita.
Sua atuação como educadora reforça essa dimensão prática de sua escrita. Ao fundar uma escola mista, em uma época em que a separação de gênero era regra, Maria Firmina transformou convicção intelectual em ação concreta.
Há, em sua obra, uma ética da atenção que merece ser sublinhada. Os personagens escravizados de Úrsula não são idealizados, tampouco usados como símbolos abstratos. Eles falam de perda, de violência, de saudade da terra natal.
Essa atenção ao detalhe humano antecipa debates que só muito mais tarde se tornariam centrais na crítica literária e nos estudos históricos. Maria Firmina não escrevia para teorizar a escravidão, mas para torná-la insuportável ao olhar atento.
O esquecimento prolongado de sua obra diz mais sobre a história cultural brasileira do que sobre seus méritos literários. Durante muito tempo, o país preferiu construir uma tradição literária baseada em figuras masculinas, brancas e urbanas, tratando exceções como curiosidades. Maria Firmina não foi exceção; foi fundação ignorada.
Sua redescoberta recente não deve ser vista como gesto de reparação simbólica, mas como correção histórica. Ler Maria Firmina dos Reis hoje é confrontar a persistência de certos silêncios históricos. Não apenas os do século XIX, mas os que se prolongaram ao longo do século XX e, em muitos aspectos, ainda permanecem.
Sua escrita não pede indulgência nem admiração tardia. Pede leitura atenta. Ao recolocá-la no centro da história da literatura brasileira, não se amplia apenas o repertório de autoras negras estudadas; altera-se o próprio modo de compreender a formação da literatura no Brasil.
Maria Firmina escreveu quando escrever não lhe era concedido como direito. O fato de sua obra ter atravessado o tempo, apesar de tudo, não é milagre nem acaso. É consequência de uma escrita insurgente que, desde o início, recusou o lugar de silêncio que lhe foi destinado.
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