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Poesia, feminismo e sequestro misterioso na Guatemala

Atualizado: 14 de nov. de 2023



Sequestro e desaparecimento até hoje não explicados

Em 19 de dezembro de 1980, a poetisa guatemalteca Alaíde Foppa desapareceu na cidade da Guatemala por volta do meio-dia. Segundo duas testemunhas oculares, ela e seu motorista, Leocadio Actun Shiroy, foram detidos por homens armados, provavelmente do Serviço de Inteligência do Exército da Guatemala G-2, por ordem do governo militar do general Fernando Romeo Lucas García. Seu marido, Alfonso Solórzano foi ministro do governo do presidente Jacobo Árbenz Guzmán e fundador do primeiro sistema de previdência social da Guatemala.


Ela era apresentadora do programa de rádio Foro de la mujer, transmitido pela Radio Universidad. Seu trabalho neste programa pode ter provocado seu desaparecimento. Ela havia gravado recentemente uma entrevista, até então ainda não transmitida, com mulheres índias da província de Qiché na Guatemala, uma das áreas mais ativas de oposição guerrilheira ao governo militar do país. Alaíde Foppa foi uma poetisa, tradutora, crítica de arte, professora e ativista feminista. Ela falou pelas mulheres que foram silenciadas durante a ditadura de seu país. Denunciou os intocáveis ​​e a injustiça na Guatemala. Em 1980, exilada no México, ela viajou para a Guatemala com a intenção de renovar o passaporte e visitar a mãe. Calar a sua voz foi o motivo do desaparecimento.



Após o desaparecimento, seus parentes vasculharam os hospitais da Cidade da Guatemala, mas não encontraram vestígios dela. Apelações foram feitas ao governo (dois membros do governo eram parentes dela) por meio de órgãos internacionais como o Comitê de Direitos Humanos da ONU, que apresentaram uma longa lista de intelectuais e figuras culturais internacionalmente conhecidas. Não houve nenhuma resposta.


Vários amigos ainda esperavam ou exigiam que ela voltasse viva. O escritor hondurenho, Augusto Monterroso, também tentou dar lugar a este duelo. Em seu diário La carta, de 1984, ele observa a terra natal de Foppa, do avião, a caminho de Manágua, e lembra dolorosamente da amiga:


A Guatemala “passa” agora abaixo de nós. Imagina [...]. Lá embaixo nas montanhas, nas cidades e nas aldeias, nossos amigos em luta, nossos mortos; mais um dia em suas vidas e em suas mortes por uma causa que também não é a dos norte-americanos, e isso diz que causa é essa: a causa popular, a poetisa Alaíde Foppa, torturada, morta e desaparecida; a de seus filhos, mortos em combate.


Elena Poniatowska, escritora e jornalista mexicana, ganhadora do Prêmio Cervantes de Literatura, em 2014, diz ser difícil aceitar o desaparecimento definitivo da poetisa e pensa: “Agora ela vai abrir a porta e entrar. O telefone tocará e eu ouvirei sua voz.”


Muitos autores que a conheceram pessoalmente destacam seu caráter doce, sua personalidade encantadora, sua cultura e seu trabalho como feminista e intelectual.



Quatro décadas de turbulências políticas


A Revolução de Outubro de 1954, na Guatemala, neutralizou todas as tentativas parlamentares de manter o sistema tradicional, abrindo espaço para todas as mudanças democráticas em um país marcado por sucessivos golpes militares, acordos oligárquicos repressão.


A Revolução gerou mudanças democráticas e a Lei de Reforma Agrária. Juan José Arévalo, o primeiro presidente democraticamente eleito, iniciou um processo de modernização do Estado, ampliando suas funções e o acesso da população aos serviços públicos.


Seu sucessor, Jacobo Árbenz Guzmán, tinha o objetivo de avançar nos processos de transformação. Porém, em 19 de dezembro de 1954, um golpe de Estado forçou a renúncia de Árbenz, e instalou a sangrenta ditadura de Carlos Castillo Armas, comandada pelos Estados Unidos.



Guerra Civil na Guatemala


Ocorrida entre os anos de 1960 e 1996, foi um confronto bélico entre diversos grupos de guerrilheiros e o governo. Estimativas indicam que aproximadamente 40 mil pessoas desapareceram e 150 mil perderam a vida.


Suas origens remontam ao Golpe de Estado de 1954. Essa estratégia havia sido traçada pela CIA - Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos. O ditador Carlos Castillo tinha ligações com esquadrões da morte e grupos anticomunistas. Em 1958, Castillo foi assassinado e substituído pelo general Miguel Ydígoras Fuentes.


Em 1960, jovens militares contrários às ações do governo guatemalteco organizaram um levante, mas não tiveram sucesso. Após o fracasso, esses soldados desertaram e estabeleceram contato com as forças armadas do governo de Cuba, que havia recentemente consolidado um regime socialista.


Durante a década de 1970, alguns filhos de Foppa se envolveram com a guerrilha, principalmente com o Exército Guerrilheiro dos Pobres (EGP). Em 1980, seu filho Juan Pablo morreu em Nebaj, cidade guatemalteca, do departamento de El Quiché. Seu marido foi atropelado e morto em 1980, na cidade do México.


Envolvimento político

Foppa começou a se envolver politicamente após a morte de Juan Pablo. Sua luta pelos direitos das mulheres e dos indígenas foi fundamental para o feminismo no México, onde co-fundou a revista Fem, em 1976. Sua morte trágica também é o tema central do livro de Gilda Salinas, Alaíde Foppa – o eco do seu nome, que junta depoimentos de amigos e familiares com fragmentos ficcionais em que a autora tenta imaginar o que deve ter passado pela cabeça da poetisa nos últimos momentos de sua vida.


No final de 1996, foi assinado um acordo permanente de cessar-fogo entre o governo e a guerrilha. Foi instituída anistia geral para militares e guerrilheiros responsáveis ​​por maus atos na guerra. O governo comprometeu-se em reformar as estruturas com o objetivo de alcançar a paz e o desenvolvimento do país.


Exílios no México


Na época de seu primeiro exílio no México, de 1931 a 1944, ela era professora da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México, onde ocupava a cátedra de Literatura e sociologia italiana. O exílio definitivo ocorreu de 1954 a 1980. O motivo maior do segundo exílio foi por seu marido ser comunista.


Dizem que Foppa nunca se sentiu profundamente exilada porque se sentia totalmente intelectual com o ambiente que encontrou no México. Sua casa tornou-se um ponto de encontro de intelectuais. Para ela, a vida no México foi, sem dúvida, um enriquecimento, uma promessa, como define Amy Kaminsky (Ph.d. Professora de Estudos de Gênero, Mulheres e Sexualidade, Universidade de Minnesota):


O senso de identidade do exilado e o senso de que o exílio é uma u-topia (um não-lugar) com promessa de que pelo menos sobreviverá – se transforma no sentido do dia da diáspora de sofrer em lugar, se não o lugar. A Diáspora conecta os exilados com intelectuais e escritores que já estavam no país quando os golpes aconteceram, que também se sentem conectados.


A importância da tradução na sua carreira

Alaíde Foppa é conhecida principalmente por sua poesia, mas ela era uma mulher multifacetada: ativista, crítica de arte, editora da revista Fem, acadêmica na UNAM onde lecionou na mulher e, finalmente, tradutora.


Ao enumerar essas atividades, muitas vezes seu trabalho como tradutora é acrescentado ao final, como se fosse secundário e insignificante em relação às outras atividades. Mesmo alguns autores sequer mencionam seu trabalho como tradutora. No entanto, a tradução não deve ser interpretada como um aspecto secundário de sua obra, mas como fundamental.


Foppa traduzia textos de natureza muito diversa, geralmente sob encomenda. No início da década de 1940, quando acabou de se estabelecer na Guatemala, trabalhou como tradutora na Embaixada da Itália e colaborou como crítica de arte e poetisa no grupo Saker-Ti (grupo guatemalteco de escritores, formado em 1947). Na mesma época, era diretora do Instituto Italiano de Cultura e seu trabalho como tradutora era comprometido com a direção do Instituto.


Também no México, teve que se adaptar à tradução e à interpretação. Cada vez mais trabalhou como tradutora simultânea, do italiano para o francês e vice-versa, do italiano e do francês para o espanhol ou vice-versa, além da possibilidade de tradução para o espanhol da Espanha, do México, da Guatemala ou da Argentina.



Atividades feministas e literárias no México

Em 1954, Alaíde partiu para o exílio no México e se tornou professora da UNAM Universidad Nacional Autónoma de México, onde ministrou o primeiro curso de sociologia para mulheres na América Latina. Também foi crítica de arte e, em 1977, organizou uma exposição de mulheres artistas no Museu de Arte Carrillo Gil.


Em 1976, foi cofundadora da Fem, a primeira revista semanal feminista no México. Também colaborou no Foro de las Mujeres, um programa de rádio da Rádio UNAM.


Integra ativamente o Grupo Internacional de Mulheres contra a Repressão. Produziu mais de 400 programas de rádio no Foro de mujeres. Publicou também as poesias Las palabras y el tempo (As palavras e o tempo), La sin ventura (A sem sorte), Elogio de mi cuerpo (Elogio do meu corpo), Los dedos de mi mano (Os dedos da minha mão), Auque es de noche (Mesmo que seja noite) e Guirnalda de primavera (guirlanda de primavera).


Um dos primeiros passos na reavaliação de sua obra poética foi, de fato, uma publicação da Antologia Poética, elaborada por Luz Méndez, escritora, jornalista, atriz e poetisa guatemalteca.


Como definir sua nacionalidade?

Alaíde nasceu em Barcelona em 1914, passou sua infância na Argentina e parte da sua juventude na Itália onde cursou história da arte e Literatura. Filha de mãe guatemalteca e de pai argentino e naturalizada guatemalteca. Segundo Franca Bizzoni, Foppa não sabia ao certo o que era: “Ela se sentia muito ligada à Itália, não sei se italiana, mexicana ou guatemalteca, ela nem sabia mais o que era. Ou Argentina! Ela não tinha uma nacionalidade, digamos, o que ela sentia era guatemalteca e italiana e ela amava muito este país.



Homenagens

Em 2014, no centenário de nascimento da poetisa, foi lançado o documentário Alaíde Foppa, la sin ventura. Por ocasião da entrega de prêmios ao melhor documentário no Festival Ícar, sua filha Silvia Solórzano disse que "ao contrário da família dos anos, que a família dos anos comemorava o aniversário da morte, provavelmente agora que a filha do centenário mais internacionalmente uma festa."


Quarenta anos após o sequestro e o desaparecimento, a Rádio UNAM homenageou a obra social e literária de Alaíde Foppa, Uma fênix de palavras e para relembrar sua obra poética, seu legado e seu ativismo feminista. Uma minissérie, que foi ouvida de 7 a 9 de dezembro de 2020, com retransmissão aos sábados 12, 19 e 26 de dezembro de 2020, pela 96.1 FM e 860 AM.


No programa foram abordados temas polêmicos e inéditos, como a descriminalização do aborto, a contracepção, a maternidade, a libertação da mulher, a alienação parental, a violência de gênero, os direitos das profissionais do sexo e o assédio.


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