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Navalha na carne, corte na alma

Atualizado: 10 de jul. de 2023



A voz das mulheres mutiladas, inclusive ela


A Face Oculta de Eva: mulheres no Mundo Árabe é um poderoso relato da brutalidade contra as mulheres no mundo muçulmano. Permanece tão chocante hoje quanto quando foi publicado pela primeira vez, há mais de um quarto de século. Foi a horrível mutilação genital feminina que Nawal El Saadawi sofreu com apenas seis anos e que primeiro despertou nela o senso de violência e injustiça presente na sociedade egípcia.



A mutilação genital feminina (MGF) refere-se aos procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos femininos ou qualquer outra lesão nos órgãos genitais das mulheres sem justificação médica. Tradicionalmente a circuncisão é feita com uma lâmina e sem qualquer anestesia.


Feminista, escritora, médica e ativista política, Nawal El Saadawi nasceu em 1931 na aldeia de Kafr Tahla, no Delta do Nilo, no Egito, de uma família de altos servidores do Estado. Seu pai, um funcionário do Ministério da Educação do Egito, fora exilado para lá junto com a mulher e os nove filhos por ter se rebelado contra a ocupação britânica.




Apesar de seu pai ser relativamente progressista, ele autorizou o corte do clitóris da filha de apenas seis anos e tentou casá-la aos 10 anos, não fosse a oposição da mãe. A mesma mãe que permitiu a mutilação da filha.



Suas experiências trabalhando como médica em aldeias ao redor do Egito, testemunhando prostituição, crimes de honra e abuso sexual, a inspiraram a escrever para dar voz a esse sofrimento.

Até sua morte, em 2021, ela explorava as causas da situação por meio de uma discussão sobre o papel histórico das mulheres árabes na religião e na literatura. Para ela, o véu, a poligamia e a desigualdade legal eram incompatíveis com o Islã justo e pacífico que ela imaginava.


Uma voz que nunca se deixou calar


Em 1972, publicou Mulheres e sexo, uma corajosa denúncia da mutilação genital feminina e dos maus-tratos conjugais sofridos por mulheres egípcias. Por causa disso, foi imediatamente demitida do cargo de diretora-geral da saúde, de editora da revista Saúde e de secretária-geral adjunta da Associação Médica do Egito.



Isso, entretanto, não fez calar a sua voz. Seus livros tiveram traduções em vários idiomas. Ela recebeu diversos prêmios e doutorados honorários em reconhecimento ao seu ativismo e a sua obra. Foi convidada como professora visitante em várias instituições acadêmicas nos Estados Unidos e na Europa.

Mulher no ponto zero


Seu romance Mulher no ponto zero, de 1973, foi inspirado na história de uma prisioneira condenada à morte, na infame prisão de Al Qanatir. Nawal a conheceu durante um projeto de pesquisa.



Firdaus, a protagonista do romance, está na prisão por assassinar seu cafetão. Ela também se recusou a assinar um documento dirigido ao presidente do Egito pedindo por sua vida. Por não temer a morte, ela rejeita tudo que possa livrá-la da pena.


O romance começa na voz de uma pesquisadora visitante (El Saadawi) que fica instantaneamente obcecada pela prisioneira. “Comparada a ela, eu não passava de um pequeno inseto rastejando sobre a terra entre milhões de outros insetos”.

Firdaus vive constantemente em busca de conhecimento e compaixão, mas por ser pobre e mulher, não recebe quase nada de ambos. Seu desejo de continuar estudando é ignorado por sua família. Ao invés disso, eles arranjam um casamento com um homem sexagenário, mesquinho, porco e violento, antes mesmo de ela completar dezenove anos.

O casamento e outros relacionamentos violentos, ficam para trás quando ela conhece Shafira, uma mulher que a leva para vida de prostituição. Aos vinte e cinco anos ela também se livra de Shafira e conduz sua vida por conta própria. Vai conseguir tudo que nunca teve. A raiva de Firdaus contra a sociedade, os homens e o tratamento dado às mulheres cresce e piora a cada dia, até ela ser presa e condenada à morte.


Mulher no ponto zero inspirou mulheres em todo o mundo e oferece aos leitores uma visão honesta do tratamento brutal das mulheres, que até hoje ainda acontece. Os livros árabes quase não são lançados em português por causa da dificuldade de encontrar tradutores.



Consequências políticas


No final dos anos 1970 ela se tornou chefe do Programa das Mulheres das Nações Unidas na África e ganhou renome internacional como feminista após a publicação de A face oculta de Eva, em 1977.



O seu envolvimento na causa feminista, a levou a publicar dezenas de livros de ficção e de não ficção e a participar na fundação da revista Confronto. Isso enfureceu as autoridades religiosas do país e acabou por ditar a sua prisão em 1980, às ordens do presidente Anwar Al Sadat.


Na prisão, proibiram-na de escrever, mas ela conseguiu redigir clandestinamente as suas memórias do cárcere em folhas de papel higiénico. Foi libertada em finais de 1981, um mês depois do assassinato de Anwar Al Sadat. A revista Time nomeou-a uma das 100 mulheres do ano.

Em 1982, fundou a Associação de Solidariedade das Mulheres Árabes e a sua intensa atividade em prol da libertação feminina fez dela alvo de ameaças de morte por parte dos islamistas radicais.

Em 1992, foi colocada sob “proteção” do governo contra sua vontade, o que a obrigou a fugir do país em 1993 e a fixar-se nos Estados Unidos, onde lecionou nas universidades Duke, Washington, Harvard, Yale, Georgetown, Columbia, Berkeley e Florida State. Foi também professora na Sorbonne, em Paris.


Retorno ao Egito


Em 1996, ela regressou ao Cairo, onde deu aulas na universidade e continuou a luta contra o conservadorismo egípcio, sendo acusada de insultar o islã e ameaçada de prisão em 2001, 2007 e 2008. Ela se via principalmente como romancista, mas permaneceu politicamente ativa. Usou sua candidatura nas eleições presidenciais de 2005 para expor a superficialidade da democracia do Egito. Em 2011, se juntou às manifestações contra o governo do presidente Hosni Mubarak na Praça Tahrir, no Cairo.



Uma de suas peças teatrais, Deus renuncia nas reuniões de cúpula, de 2006, levou-a a julgamento por apostasia (ação de renegar algo, normalmente relacionado com a renúncia de uma religião ou da fé religiosa) e heresia pelas altas autoridades religiosas da Universidade de Al Azhar (2008). A obra continua proibida no Egito.

O feminismo de Nawal El Saadawi

Flávia Abud Luz, Doutoranda em Ciências humanas e sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) escreveu um importante ensaio sobre o feminismo de Nawal El Saadawi. Fiz o resumo abaixo. No final da página deixo o link para o texto completo.

Observações cuidadosamente realizadas ao longo de sua infância e adolescência lhe permitiram questionar a noção de hierarquia de gênero por meio das distinções sociais feitas entre meninas e meninos, e posteriormente mulheres e homens.


O fato de El Saadawi fazer parte de uma família de classe média e bem instruída não a isentou de ter na sua juventude a projeção dos ideais anteriormente mencionados com relação ao papel que a mulher egípcia ocuparia na sociedade: o papel da esposa.


O incômodo que seus textos provocavam, as “palavras afiadas”, estava justamente neste trabalho de lançar um foco naquela que para a autora era uma ferida importante da sociedade egípcia: a violência (física, psicológica e sexual) infligida às mulheres por conta de uma moral rígida que se apropria da religião como forma de legitimação.

El Saadawi (2002) argumenta que a MGF (Mutilação Genital Feminina) não é um costume religioso, mas sim uma prática anterior à inserção do Islã (no século VII) que se acomodou às estruturas patriarcal e capitalista das sociedades árabes ao longo do tempo.


Neste sentido, a prática converteu-se em um aspecto ligado à honra familiar e à castidade da mulher, pois atendia ao “dilema patriarcal” de garantir a hereditariedade da família e a sucessão da propriedade (ou bens), evitando que fossem entregues a filhos gerados em uma relação com um homem de outra família ou linhagem.



El Saadawi questiona com veemência a desigualdade de gênero presente no direito de herança (a mulher herda a metade do que o homem), bem como a ideia presente em algumas escolas jurídicas de que a mulher precisava do consentimento de seu pai para se casar, mesmo se já tivesse alcançado a maioridade.

A censura promovida à obra de El Saadawi nos anos 1980 foi, sobretudo, fruto de uma pressão religiosa. A autora a descreve do seguinte modo: “minha vida estava capturada no fogo cruzado das forças de segurança do Estado e dos movimentos terroristas que ocultavam seus objetivos por trás de uma fachada religiosa".



A atualidade da obra de El Saadawi pode ser observada na relevância das pautas abordadas por ela, tais como a mutilação genital feminina (MGF), a violência doméstica (em suas formas física, psicológica e sexual), e as leis de família (que orientam tópicos como os direitos de mulheres e homens no casamento, no divórcio e na custódia de filhos). Essas reivindicações inspiraram a reflexão de estudiosas no Egito e no Oriente Médio acerca do status da mulher.

Entre as diversas vozes femininas que El Saadawi inspirou destaco aqui a escritora egípcia Mona Eltahawy, que em sua obra ressalta a importância na atuação feminina em lutar por seus direitos familiares, sociais e econômicos em um contexto político marcado por governos autoritários como é o caso do Egito.

Formação acadêmica

El Saadawi completou os estudos na escola secundária para meninas Nabeweya Moussa e tornou-se pensionista na Escola Secundária Helwan para Meninas, onde se especializou em Ciências (1945). Estudou como bolsista na renomada Escola de Medicina Kasr Alainy da Universidade do Cairo (1949-1954). Formou-se em psiquiatria, em 1955.

Formação profissional

Nawal trabalhou como médica residente no Hospital Universitário de Kasr Alainy, em centros de saúde. Em 1958 passou a integrar o Departamento de Doenças Torácicas no Ministério da Saúde do Cairo e Gizé.


Concluiu o mestrado em saúde pública na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Em 1966 foi nomeada diretora-geral de saúde do Egito. Serviu como secretária-geral adjunta da Associação Médica do Egito e foi editora da revista Saúde (1968-1974).


De 1973 a 1976, trabalhou na Faculdade de Medicina da Universidade Ain Shams, no Cairo, investigando as neuroses femininas. De 1979 a 1980, foi consultora do programa ONU Mulheres em África e no Médio Oriente.

Premiações


Em 2004, ela recebeu o Prémio Norte-Sul, do Conselho da Europa e o Prémio Seán MacBride, do Gabinete Internacional para a Paz, em 2012. Ficou conhecida como “Simone de Beauvoir do mundo árabe” pelas suas posições contra a mutilação genital feminina (e masculina) e o véu islâmico.

O descanso da guerreira

Nawal El Saadawi morreu num hospital do Cairo no dia 21 de março de 2021. Três vezes divorciada, foi mãe de duas filhas que, ao contrário dela, mas graças a ela, nunca sentiram o frio de uma navalha a lhes cortar a carne e, sobretudo, a lhes dilacerar o espírito, até ao fim dos dias.


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