Mary Wollstonecraft Godwin, escritora e filósofa inglesa, era a segunda de sete filhos de uma família rica que empobreceu e faliu ao longo do tempo. Para se sustentar e ajudar a mãe e as irmãs a sobreviverem ao pai alcoólatra e violento, ela trabalhou como governanta em casas de famílias abastadas, de onde tirou grande parte de suas observações sobre a educação deficitária das mulheres da época.
Suas reflexões sobre o status do sexo feminino faziam parte de uma tentativa de chegar a uma compreensão abrangente das relações humanas dentro de uma civilização cada vez mais governada pela ganância e pelo consumo.
Precursora do Feminismo
Mais de um século antes de Simone de Beauvoir, Wollstonecraft já elaborava os primeiros pensamentos sobre a opressão estrutural das mulheres e suas raízes. “Desafortunada é a situação das fêmeas, educadas de acordo com a moda, mas deixadas sem fortuna alguma”. Thoughts on the education of daughters (Pensamentos sobre a educação das filhas - 1787) – um dos primeiros, senão o primeiro escrito em que uma mulher abordava a situação feminina na Europa.
Incomodada principalmente com a falta de opções de carreiras para mulheres no campo, Wollstonecraft se mudou para Londres, onde aprendeu sozinha a falar alemão e francês, passando a trabalhar como tradutora e resenhista no periódico Analytical Review que seu editor, Joseph Johnson, junto com Thomas Christie, iniciou em maio de 1788.
Ela começou a frequentar jantares na casa do novo chefe, onde entrou em contato com iluministas como o político Thomas Paine, o filósofo William Godwin e o artista Henry Fuseli. Mary debatia com eles, de igual para igual, sobre política e literatura, tendo sempre como foco a Revolução Francesa, o principal acontecimento da época.
Integrada ao ambiente urbano e politizado de Londres, Wollstonecraft se tornou defensora ferrenha da igualdade, da liberdade e da fraternidade, conceitos que emanavam da França pós-revolucionária. Desde então, ela defendeu que as mulheres deveriam ter o mesmo direito à educação que os homens e que não estudassem apenas para se tornarem “esposas ideais”. Ela aplicou o ardente feminismo aos seus apelos por liberdade, razão e educação, independentemente do sexo. Entendia que a educação era vital para as mulheres.
Autodidata com Muito Talento
A própria educação um tanto aleatória de Wollstonecraft não era, entretanto, totalmente incomum para alguém de seu sexo e posição, nem era particularmente deficiente. Seus escritos publicados mostram que ela adquiriu um verdadeiro domínio da Bíblia e um bom conhecimento das obras de vários dos mais famosos filósofos antigos, parcialmente explicado por seu conhecimento pessoal com Thomas Taylor, famoso por suas traduções de Platão. Ela também se baseou em uma variedade de fontes do início da era moderna, como as obras de Shakespeare e Milton.
Tradução e Revisão de Obras Literárias
Para entender até que ponto Wollstonecraft compensou a falta de uma educação formal, é essencial avaliar plenamente que seus talentos se estenderam à tradução e à revisão, e que essas atividades, independentemente de sua própria curiosidade intelectual, tornaram familiar seu contato com muitos autores, incluindo Leibniz e Kant. Ela traduziu para o inglês as seguintes obras:
De l'importance des opinions religieuses (Da Importância das Opiniões Religiosas, de Jacques Necker - 1788). A partir do francês.
Elemente der Moral, für den Gebrauch von Kindern (Elementos de Moralidade, para o Uso de Crianças, do Rev. CG Salzmann - 1790). A partir do alemão;
Jonge Kleinzoon van Madame de Cambon (O jovem neto de Madame de Cambon, de Madame de Cambon - 1790). A partir do holandês.
Em cada caso, os textos que ela produziu eram quase como se fossem seus, não apenas porque ela estava de acordo com os autores originais, mas porque ela quase os reescreveu. É improvável que por causa disso o reverendo Salzmann tenha se ressentido com ela já que ele traduziria para o alemão dois livros de Mary: A Vindication of the Rights of Woman (Eine Verteidigung der Rechte der Frau) e William Godwin's Memoirs of the Author of a Vindication of the Rights of Woman (William Godwins Memoiren des Autors einer Verteidigung der Rechte der Frau - 1798).
Jean-Jacques Rousseau, um ferrenho defensor da liberdade política, reconheceu em sua obra Emílio que as mulheres somente deveriam ser educadas para fazê-las melhores esposas, capazes de ajudar os homens. Wallstonecraft escreveu A vindication para mostrar o quão errado Rousseau estava a respeito das mulheres. O mundo só se revitalizaria se as mulheres fossem felizes, como os homens. Ainda assim, elas estavam presas a uma série de expectativas por causa de sua dependência masculina.
Suas muitas críticas revelam até que ponto ela, como muitos outros moralistas do século XVIII, temia as consequências morais da leitura de romances. Mary acreditava que mesmo aqueles de qualidade relativamente superior incentivavam a vaidade e o egoísmo. Ela admitia, no entanto, que ler essas obras seria melhor do que não ler nada.
Além de romances, Wollstonecraft revisou poesia, relatos de viagens, obras educacionais, sermões, biografias, histórias naturais e ensaios e tratados sobre temas como Shakespeare, felicidade, teologia, música, arquitetura e o horror do confinamento solitário; os autores cujas obras ela comentou incluíam Madame de Staël, Emanuel Swedenborg, Lord Kames, Rousseau e William Smellie.
O Problema do Duplo Padrão Moral
Mary contestava o duplo padrão moral, ou seja, a ideia de que para as mulheres é mal visto relacionar-se com vários homens, enquanto o contrário nem sempre é verdadeiro, pois para os homens há uma certa normalidade. É como, hoje, a indagação popularmente feita: “Por que um homem que vai para o carnaval e fica com todas as mulheres é um garanhão e uma mulher que vai para o carnaval e fica com todos os homens é uma vagabunda?”
Ela acreditava que homens e mulheres deveriam ser julgados pelo mesmo padrão moral porque homens e mulheres não são diferentes socialmente, nem em questão de preferências, a não ser por questões culturais e históricas. Exatamente como o movimento feminista prega hoje. De acordo com essa concepção, se os homens e as mulheres fossem educados para ser iguais, seriam iguais.
Se homens e mulheres se comportam de formas diferentes, é tudo resultado de uma construção social. Neste ponto, o movimento feminista começa a negar a influência biológica, psicológica, hormonal, pois tudo é uma construção cultural e por isso deve ser derrubada.
Confronto com Edward Burke
Até o final de 1789, seus artigos eram principalmente de natureza moral e estética. No entanto, em dezembro de 1789, ela revisou um discurso de seu velho amigo, Richard Price, intitulado Um Discurso sobre o Amor ao Nosso País, proferido em 4 de novembro de 1789, na Casa de Reuniões do Antigo Judaísmo, para a Sociedade Comemorativa da Revolução da Grã-Bretanha.
Esse discurso em parte levou Edward Burke a compor suas famosas Reflexões sobre a Revolução na França e sobre os procedimentos em certas sociedades em Londres relativas a esse evento (1790). Ao ler as críticas à revolução publicadas por Burke, enfurecida e incentivada por Johnson, seu editor, ela escreveu A Vindication of the Rights of Men (Uma reivindicação dos direitos dos homens), atacando a aristocracia e defendendo o republicanismo. Publicada anonimamente no final de novembro, a segunda edição em meados de dezembro, já com o nome de Wollstonecraft, marcou uma virada em sua carreira e a estabeleceu como escritora política.
A Liberdade Por Meio da Educação
Wollstonecraft argumentava que o sistema educacional de sua época treinava deliberadamente as mulheres para serem frívolas e incapazes. Ela postulou que um sistema educacional que permitisse às meninas as mesmas vantagens dos meninos resultaria em mulheres que seriam não apenas esposas e mães excepcionais, mas também trabalhadoras capazes em muitas profissões.
A publicação de seu primeiro livro, Thoughts on the Education of Daughters (Reflexões sobre a educação das filhas - 1787) ajudou a aliviar suas consideráveis dificuldades financeiras. Embora possa parecer um tanto superficial, o livro serviu de base para muitos dos tópicos aos quais ela retornaria em suas obras mais famosas da década de 1790.
Quando Wollstonecraft começou a escrever The Vindication of the Rights of Woman (Uma Reivindicação dos Direitos da Mulher - 1792), o rejuvenescimento moral da sociedade e a felicidade de mulheres individuais foram entrelaçados. As mulheres eram mal preparadas para seus deveres como seres sociais e aprisionadas em uma teia de falsas expectativas que inevitavelmente as tornariam miseráveis.
Ela queria que as mulheres fossem vistas como seres racionais e independentes, cujo senso de valor vinha, não de sua aparência, mas de sua percepção interior de autocontrole e conhecimento. As mulheres tinham que ser educadas; suas mentes e corpos tinham de ser treinados. Isso as tornaria boas companheiras, esposas, mães e cidadãs. Acima de tudo, as tornaria plenamente humanas, ou seja, seres regidos pela razão e caracterizados pelo autocontrole.
É assim, por exemplo, que a demanda por educação tem por objetivo exclusivo permitir o livre desenvolvimento da mulher como ser racional, fortalecendo a virtude por meio do exercício da razão e tornando-a plenamente independente.
Além das críticas às práticas e teorias pedagógicas existentes, a obra contém muitas propostas sociais e políticas que vão desde um esboço detalhado das mudanças necessárias no currículo escolar até a sugestão de que as mulheres recebam não apenas direitos civis e políticos, mas tenham seus próprios representantes eleitos.
Como Deveria Ser a Educação Feminina
Mary defendia que, se as mulheres são fúteis e ficam o dia todo falando sobre cabelo e vestido, é porque não receberam uma educação igual à dos homens. Homens e mulheres só são diferentes por receberem uma educação diferente. Para contornar esse problema, ela pregava que a educação deve ser pública, obrigatória e mista para nivelar a cultura entre os sexos. A maneira ideal de igualar a formação de homens e mulheres é colocar a educação das crianças sob o cuidado do Estado.
Para ela, os homens e as mulheres da sua época eram incapazes de criar os próprios filhos, mas parecia esquecer-se de que o Estado é composto por esses mesmos homens. Porém, em que ela se baseava para afirmar que os pais que trabalhavam para o Estado eram mais aptos do que os pais que empenhavam-se pela educação de seus próprios filhos?
A idolatria da razão, característica desse período, ajuda a entender esse pensamento. Ela imaginava que tanto o conhecimento quanto a virtude eram aprimorados pelo emprego do racionalismo, o que colocava a devoção religiosa da família em descrédito diante do que poderiam oferecer os pensadores iluministas.
Ocupações que as Mulheres Poderiam Assumir
Em relação àqueles que argumentavam que as mulheres eram inferiores intelectualmente aos homens, ela insistia que esse equívoco se devia à falta de instrução das mulheres. Defendia que havia uma série de ocupações que elas poderiam assumir caso tivessem acesso a educação e oportunidades.
“Quantas mulheres desperdiçaram a vida, vítimas do desgosto, e que poderiam ter sido médicas, administradoras de fazendas, gerentes de loja, capazes de se manter sozinhas, por sua própria capacidade?”
Essas conquistas também seriam boas para os homens porque os casamentos seriam baseados no afeto mútuo e no respeito. Ela encoraja as mulheres a ampliarem seus interesses para abranger a política e as preocupações de toda a humanidade.
Obras Principais
Entre as últimas obras notáveis de Wollstonecraft estão cartas escritas durante uma curta residência na Suécia, Noruega e Dinamarca (1796), um diário de viagem com uma inclinação sociológica e filosófica.
A vindication of the rights of Woman (Uma Reivindicação dos Direitos da Mulher - 1792) - visto como o primeiro grande tratado feminista, foi escrito numa época de efervescência intelectual e política. O Iluminismo havia colocado os direitos dos homens no centro do debate político, culminando, na França, com a Revolução Francesa no mesmo ano em que Wallstonecraft escreveu essa obra.
Wollstonecraft argumentava que o sistema educacional de sua época treinava deliberadamente as mulheres para serem frívolas e incapazes. Ela postulou que um sistema educacional que permitisse às meninas as mesmas vantagens dos meninos resultaria em mulheres que seriam não apenas esposas e mães excepcionais, mas também trabalhadoras capazes em muitas profissões.
Outras feministas fizeram apelos semelhantes para melhorar a educação para as mulheres, mas o trabalho de Wollstonecraft foi único ao sugerir que a melhoria do status das mulheres fosse efetivada por meio de mudanças políticas como a reforma radical dos sistemas educacionais na Inglaterra. Tal mudança, ela concluiu, beneficiaria toda a sociedade.
Thoughts on the Education of Daughters (Reflexões sobre a educação das filhas - 1787) - reflexões sobre a conduta feminina nas tarefas mais importantes da vida. É uma réplica de um livro publicado originalmente antes de 1787. Ele foi restaurado, página por página, para se aproximar ao máximo do original.
An historical and moral view of the French Revolution (Uma visão histórica e moral da revolução francesa - 1794) - uma retrospectiva dos primeiros estágios da revolução, com uma abordagem original, do ponto de vista de pessoas comuns, que haviam endossado os acontecimentos políticos no cotidiano.
The Wrongs of Woman, or Mary (Os erros da mulher, ou Mary - 1798) - obra inacabada publicada postumamente que é uma sequência novelística de A Vindication of the Rights of Woman.
Pouco Reconhecimento Entre os Intelectuais
Embora tenha sido muito encorajada por seu editor, Joseph Johnson, ela recebeu pouco apoio de outros intelectuais em sua vida. Mesmo Godwin não gostou dela em seu primeiro encontro. Relativamente poucas das principais escritoras deram a Wollstonecraft seu apoio sincero no século XVIII.
Alguns zombaram dela, mas raramente suas ideias foram genuinamente avaliadas da maneira que passaram a ser desde a segunda metade do século XX. A poetisa Anna Barbauld (1743-1825) foi uma dos poucos membros da intelectualidade radical da época cuja oposição a Wollstonecraft foi o produto de um envolvimento real com suas opiniões sobre as mulheres.
No final da década de 1790 e durante a maior parte do século XIX, Wollstonecraft foi ridicularizada por muitos, apenas por causa do que foi considerado uma vida pessoal escandalosa. Houve, com certeza, exceções importantes, especialmente na América. Mas os elogios que ela recebeu em ambos os lados do Atlântico vieram de um conhecimento provavelmente limitado de suas ideias ou de sua personalidade intelectual.
Revisão de Suas Teorias
A combinação de sua experiência de amor não correspondido por um americano, o capitão Gilbert Imlay, os preceitos de suas próprias emoções e as tribulações de uma viagem ao norte da Europa a levaram a reconsiderar sua visão do poder da razão. De fato, ela também deveria rever sua opinião sobre a França, a cultura e os costumes educados, até mesmo o catolicismo que ela abominava, uma aversão que sua estada em Portugal muito fez para fortalecer.
Ela se aproximou um pouco mais de Burke, pois passou a pensar que a tirania da riqueza comercial pode ser pior do que a posição e o privilégio. Na França, ela já havia começado a escrever menos criticamente sobre o sistema de governo inglês.
Mary Wollstonecraft e o Feminismo de Hoje
Há uma crítica de Mary Wollstonecraft às mulheres e aos movimentos femininos que é incompatível com o movimento feminista de hoje. Ela criticava as mulheres que se comportavam como homens, às quais chamava de mulheres masculinizadas.
Também defendia a maternidade e, em alguns pontos, a modéstia e a castidade. Acreditava que todos os problemas da humanidade e os problemas morais dos homens poderiam ser solucionados com a razão, com a ciência e com a educação.
Como primeira feminista, vivendo nos anos 1700, Wollstonecraft entendia que as mulheres eram socialmente privilegiadas. Por exemplo, elas não precisavam trabalhar tanto quanto os homens e mesmo assim recebiam as vantagens de ter o que comer e de ter onde morar.
Influências
As livres-pensadoras George Eliot, Barbara Bodichon e Virginia Woolf estavam entre feministas posteriores que defenderam Wollstonecraft contra as acusações de impropriedade social e sexual, que perduraram mesmo 100 anos depois. Wollstonecraft continua sendo uma figura inspiradora na história do pensamento livre e do feminismo, representando uma devoção aos valores de liberdade, razão e igualdade, que permanecem no cerne do humanismo de hoje.
Maternidade, Casamento e Tentativas de Suicídio
Em dezembro de 1792, ela viajou para a França, onde conheceu Gilbert Imlay, um comerciante americano. Como os súditos britânicos ficavam cada vez mais riscos sob o Terror, Wollstonecraft se fez passar por esposa de Imlay para se beneficiar da segurança desfrutada na época pelos cidadãos americanos. Eles nunca se casaram. Imlay foi provavelmente a fonte da maior infelicidade de Wollstonecraft, primeiro pela sua falta de ardor por ela, depois pela sua infidelidade e, finalmente, pela sua total rejeição por ela. Acima de tudo, seu amor por Imlay levou Wollstonecraft à compreensão de que as paixões não são tão facilmente controladas pela razão.
Wollstonecraft teve uma filha com Imlay. Ela nasceu em Le Havre em maio de 1794 e recebeu o nome de Fanny, em homenagem à amiga de Wollstonecraft, Fanny Blood. Um ano após o nascimento de Fanny, Wollstonecraft tentou o suicídio duas vezes, primeiro em maio, depois em outubro de 1795. Ela finalmente rompeu com Imlay em março de 1796.
Em abril do mesmo ano, ela renovou seu relacionamento com William Godwin e eles se tornaram amantes naquele verão. Eles se casaram na igreja de St Pancras em março de 1797. O casamento foi feliz, mas breve; Mary morreu 11 dias após o nascimento de sua segunda filha, Mary Wollstonecraft Shelley ou Mary Shelley, que se tornou uma romancista mais conhecida por ser a autora do romance Frankenstein.
Wollstonecraft morreu de infecção pós-parto, aos 38 anos, deixando quase vinte livros, incluindo romances e análises de política, história e direitos das mulheres. Atualmente, historiadoras feministas e estudiosas da Revolução Francesa têm revisado Mary Wollstonecraft, reafirmando cada vez mais o seu título de fundadora do feminismo na Europa.
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