
A escritora e abolicionista brasileira Júlia Lopes de Almeida integrava o grupo de escritores e intelectuais que planejou a criação da Academia Brasileira de Letras, em 1897. Seu nome constava da primeira lista dos 40 "imortais" que fundaram a instituição, elaborada pelo escritor Lúcio de Mendonça (1854-1909).
O planejamento da Academia começou logo após a Proclamação da República (1889), por iniciativa de um grupo de intelectuais. Júlia Lopes era a única mulher. Em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, Lúcio de Mendonça considerou ser justo oferecer uma cadeira na Academia para a escritora. Isso não ocorreu porque, segundo os intelectuais que se opuseram, não havia mulheres na Académie Française de Lettres, que servia de inspiração para a Academia Brasileira. Um machismo mal disfarçado.
Renegando o protagonismo e a emancipação feminina, a ABL concedeu um lugar no grupo ao marido da escritora, Filinto de Almeida, para ocupar a cadeira número 3, que seria dela. Ele chegou a ser chamado de acadêmico consorte. Somente em 1977, 80 anos após a fundação, Rachel de Queiroz (1910-2003) foi eleita a primeira mulher para a Academia.
"Por que não hei de enganar do mesmo modo? Em consciência não há homens nem mulheres: há seres com iguais direitos naturais, mesmas fraquezas e iguais responsabilidades... Mas não há meio dos homens admitirem semelhantes verdades. Eles teceram a sociedade com malhas de dois tamanhos - grandes para eles, para que seus pecados e faltas saíam e entrem sem deixar sinais; e extremamente miudinhas para nós" Júlia Lopes de Almeida, em "Eles e elas". 2a. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1922, p. 137. |
Em 2017, depois de 120 anos, a ABL homenageou Júlia Lopes, no ciclo de conferências Cadeira 21, e reconheceu a injustiça por ela sofrida.
Retrato da sociedade da época
Crítica da situação social do Brasil, em seus romances a autora costumava representar a sociedade sob várias perspectivas por meio de enredos, tramas e intrigas nos quais imprime posicionamentos políticos, ideológicos e religiosos próprios do momento retratado.
Diferindo-se dos escritores homens desse período em relação aos assuntos de destaque em sua obra e sobre a visão que aplica a eles, Júlia Lopes deixou um legado rico no sentido de retratação da sociedade desde a abolição da escravatura até a década de 1930.
Situação das mulheres na literatura
Júlia Lopes era considerada uma escritora com ideias avançadas para a sua época. Ela defendia a abolição da escravatura, a república, o divórcio, a educação formal de mulheres, a emancipação dos corpos femininos e os direitos civis. Com o texto clássico e à frente de seu tempo, ela insere em suas obras diferentes pontos de vista e representa a mulher e a diferença de tratamento a elas dado pela sociedade.
... Os povos mais fortes, mais práticos, mais ativos, e mais felizes são aqueles onde a mulher não figura como mero objeto de ornamento; em que são guiadas para as vicissitudes da vida com uma profissão que as ampare num dia de luta, em uma boa dose de noções e conhecimentos sólidos que lhe aperfeiçoem as qualidades morais. Uma mãe instruída, disciplinada, bem conhecedora de seus deveres, marcará fundo indestrutivelmente, no espírito do seu filho, o sentimento da ordem do estudo e do trabalho de que tanto carecemos.
Júlia Lopes de Almeida, em A Mensageira, 1897 |
Autora bem diversificada, ela escreveu romances, contos, crônicas, ensaios e peças de teatro durante uma época em que mulheres que aspiravam a qualquer profissão, além de cuidar do lar, eram explicitamente ignoradas — ou então, simplesmente substituídas por homens.
As mulheres, ao longo da história, criaram, atuaram, escreveram e produziram belíssimos trabalhos nas mais diversas áreas do conhecimento humano. Porém, os tempos eram ainda mais difíceis e conservadores. O protagonismo sempre acabava indo parar nas mãos de seus maridos ou professores.
Segundo o site da Editora Darkside, a abolicionista realizou inúmeras palestras ao longo de sua vida, a fim de conscientizar as mulheres sobre seus papéis de emancipação perante a sociedade misógina da época. Júlia tornou-se uma das escritoras mais publicadas durante o período da Primeira República (1889-1930). Tal sucesso lhe rendeu visibilidade e a publicação de diversos artigos e matérias que abordavam direitos iguais entre os gêneros.
Conhecer a história de Júlia Lopes de Almeida é entender e se dar conta de que vestígios de um sexismo enraizado em nossa sociedade ainda se fazem presentes na jornada de inúmeras mulheres que lutam para conquistar seus espaços.
A partir dos anos 1970, aconteceu a redescoberta de Júlia Lopes e de outras autoras esquecidas, principalmente no meio acadêmico, nos estudos e pesquisas das áreas de Letras e Ciências Sociais.
Por isto o que não quero é escrever meramente; não penso em deliciar o leitor escorrendo-lhe n'alma o mel dos sentimento, nem em dar-lhe comoções de espanto e de imprevisto. Pouco me importo de florir a frase, fazê-la cantante ou rude, recortá-la a buril ou golpeá-la a machado; o que quero é achar um engaste novo onde encrave as minhas ideias, seguras e claras como diamantes: o que quero é criar todo o meu livro, pensamento e fórmula, fazê-lo fora desta arte de escrever, já tão banalizada, onde me embaraço com raiva e não saber nada de melhor. (...) quero escrever um livro novo, arrancado do meu sangue e do meu sonho, vivo, palpitante, com todos os detalhes de céu e de inferno que sinto dentro de mim; livro rebelde sem adulações, digno de um homem.
Júlia Lopes de Almeida em Ânsia Eterna - 1903 |
Escolas literárias da época
Realismo – originário da França, o Realismo é a escola literária que analisa a realidade da época vivida pelo autor. No Brasil, ele surge depois do Romantismo e antes do Simbolismo, compreendendo os anos de 1881 a 1893 – o mesmo período em que o Naturalismo e o Parnasianismo também ocorreram. Marcado pelo objetivismo, pela veracidade e pela denúncia social, o Realismo brasileiro tem início com a obra de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicada em 1881.
Parnasianismo – movimento literário que surgiu na mesma época do Realismo e do Naturalismo, no final do século XIX. De influência e tradição clássica, tem origem na França. É baseado no culto da forma, na impassibilidade e impessoalidade, na poesia universalista e no racionalismo. A proposta inovadora era de uma poesia de linguagem rebuscada, racional e perfeita do ponto de vista formal. Acreditavam que, se estivessem apoiados no modelo clássico poderiam contrapor os exageros e a fantasia típica do Romantismo.
Naturalismo – também surgido na França, foi um movimento artístico e cultural que se manifestou na literatura, no teatro e nas artes plásticas. Suas características principais são a objetividade, a impessoalidade e o retrato fiel da realidade. O movimento foi influenciado pelas correntes científicas e filosóficas que surgiam na Europa como o determinismo, o darwinismo e o cientificismo. Para os artistas naturalistas, tudo estava determinado e possuía uma explicação lógica pautada na ciência. Assim, surge uma arte de denúncia social, focada nos temas da pobreza, das desigualdades, da disputa de poder e das patologias sociais. No Brasil, o movimento naturalista começa em 1881 com a publicação da obra O Mulato, de Aluísio de Azevedo. Já em Portugal, o movimento surge em 1875 com o romance O crime do padre Amaro, do escritor Eça de Queiroz.
Características literárias
Júlia Lopes de Almeida é associada ao Realismo e ao Naturalismo. Portanto, a sua obra mais conhecida — A falência (1901) — é marcada pela objetividade, crítica à sociedade brasileira, temática do adultério e determinismo. É possível encontrar em suas obras as seguintes características:
֎ Objetividade - em oposição ao sentimentalismo.
֎ Antropocentrismo - valorização da razão.
֎ Crítica à sociedade brasileira.
֎ Valorização do momento presente.
֎ Presença da temática do adultério.
֎ Cientificismo - uso exagerado de teorias científicas na análise de personagens.
֎ Determinismo - influência do meio, raça e momento histórico nos personagens.
֎ Biologismo - o comportamento dos personagens é associado a causas biológicas.
֎ Zoomorfização - atribuição de características animais a seres humanos. |
Pioneirismo na literatura infantil
Pioneira da literatura infantil no Brasil, seu primeiro livro, Contos Infantis (1886), foi uma reunião de 33 textos em verso e 27 em prosa destinados às crianças, escrito em parceria com sua irmã, Adelina Lopes Vieira.
Obras publicadas
Romances
A Família Medeiros (1892) A Viúva Simões (1897) Memórias de Marta (1899) A Falência (1901) A Intrusa (1908) Cruel Amor (1911) A Silveirinha (1913) Correio da roça (1913) A Casa Verde Pássaro Tonto (1934) O Funil do Diabo 1934 | Novelas e contos
Traços e Iluminuras (1887) Ânsia Eterna (1903) Era Uma Vez (1917) A Isca (1922) A Caolha |
Diversos
O livro das Noivas (1896) Livros das Donas e Donzelas (1906) Jardim Florido (1922) Jornadas No Meu País (1920) Eles e Elas Oração a Santa Dorotéia (1923) Maternidade (obra pacifista) Brasil (conferência) | Teatro
A Herança (1909) O Caminho do Céu A Última Entrevista A Senhora Marquesa O Dinheiro dos Outros Vai Raiar o Sol |
EscolaresHistórias na nossa Terra (1907) Contos Infantis (com Adelina Lopes Vieira) A Árvore (com Afonso Lopes de Almeida) |
Biografia
Júlia Lopes de Almeida nasceu em 24 de setembro de 1862, no Rio de Janeiro. Filha de portugueses ricos e cultos, quando ainda era criança, ela e sua família se mudaram para uma fazenda, em Campinas, no estado de São Paulo. Júlia recebeu uma educação liberal e, com o apoio do pai, aos 19 anos de idade, já escrevia para A Gazeta de Campinas, coisa bem incomum para as mulheres da época, monopolizadas pelos homens.
Em 1886, Júlia Lopes mudou-se para Lisboa. Em coautoria com a irmã, a escritora Adelina Lopes Vieira, publicou o livro Contos infantis. Em razão disso, é considerada uma das pioneiras da literatura infantil brasileira. Em Portugal ela conheceu e se casou com o poeta português Filinto de Almeida e publicou seu primeiro livro para adultos, Traços e iluminuras, escrito quando a autora tinha 24 anos ֎
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