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A ucraniana que buscou intensamente a fama

Atualizado: 14 de nov. de 2023



Eu sou a minha própria heroína

Em maio de 1884, uma jovem desconhecida chamada Marie Bashkirtseff apostou seu desejo de fama na publicação de seu diário pessoal. Ela sabia que teria pouco tempo por causa da tuberculose avançada. Seu pulmão direito já fora danificado, enquanto o esquerdo se deteriorava lentamente.

Ela escreveu o que se tornaria a versão definitiva do prefácio de seu diário indo direto ao ponto: desejava a imortalidade, por todos os meios possíveis. Se lhe restasse tempo suficiente antes de sua morte, ela desejaria ganhar renome póstumo por meio de sua pintura. Em caso de morte prematura, seu diário deveria ser publicado.


Apesar de seus esforços, Marie não conseguiu seu objetivo porque não fazia parte dos círculos literários ou artísticos da época. De pequena aristocracia russa, sua família materna havia deixado o que hoje é chamado de Ucrânia em 1858, percorrendo a Europa com o médico da família e uma comitiva de criados. Ela começou a escrever o seu diário aos quatorze anos.


Desejo de glória e fama


Ela elaborou detalhadamente os meios pelos quais pretendia a glória e a fama. Primeiro, tentou alcançar a celebridade por meio da sua voz, consultando mestres de canto em Nice, Paris e Roma, imaginando-se festejada nos palcos da Europa. Uma laringite crônica, provavelmente o primeiro sintoma da tuberculose que acabaria com sua vida, anulou esse desejo.


Em seu diário, ela escreveu longas e brilhantes descrições de seu rosto e da sua nudez, passando essa atenção indevida a si mesma como um gesto grandioso em direção à posteridade. Observou, maliciosamente, que seria poupada do trabalho de falar sobre sua aparência física.


Diante do espelho, ela se descrevia no ato de admirar seus "braços incomparáveis", a brancura e a delicadeza de suas mãos, ou a forma dos seus seios, transformando efetivamente as páginas do diário em locais de exibição da sua aparência física que não podia mostrar em público.


No estúdio (1881). Bashkirtseff se retratando como a figura central sentada em primeiro plano.


Cartas enviadas a escritores famosos


Anonimamente, Marie escreveu primeiro para Alexandre Dumas filho (filho ilegítimo do escritor Alexandre Dumas), autor de A dama das Camélias. Em 1883, enviou cartas para Émile Zola, escritor francês do século XIX e um dos principais escritores do naturalismo francês, autor de Germinal, O romance experimental e A besta humana.


Da mesma forma, contatou Edmond Goncourt, escritor francês, autor de um diário íntimo, romances e peças de teatro. Em 1884, ele publicou Chérie, romance que havia anunciado pela primeira vez em seu prefácio de La Faustin em 1882.


Descrevendo-o como "um estudo psicológico e fisiológico" dos primeiros passos de uma menina em direção à feminilidade, ele solicitou o que chamou de "colaboração feminina", orientando suas leitoras a anotar suas memórias de adolescência e a enviá-las anonimamente ao seu editor.


Com a sua franqueza característica, Marie informou-o que Chérie estava cheia de inadequações. Contou que ela mesma vinha escrevendo suas próprias impressões desde tenra idade e agora se propunha a enviá-las a ele. Se Goncourt recebeu essa carta ninguém sabe; se o fez, não respondeu.


Em 1884, meses antes da sua morte, ela e o escritor e poeta francês Guy de Maupassant, trocaram dezenove cartas que anos depois foram reveladas por meio da imprensa. Muito se especulou sobre se a pintora e o escritor se conheceram e, em torno dessa hipótese, foram tecidas as hipóteses mais romanescas.


Sem se deixar intimidar por sua falta de sucesso em se inscrever na vida dos grandes nomes da literatura, ela prontamente escreveu os nomes deles em seu prefácio. O valor do diário como material de leitura residia, afirmou, em seu status de documento humano: o público tinha apenas que consultar os senhores Zola, Goncourt e Maupassant. Era um exagero, como ela bem sabia.


O Diário, última tentativa de entrar para a história


Fac-símile da caligrafia de Marie Bashkirtseff em uma página de seu Diário

e fotografia da autora quando adolescente.

Agora não escrevo mais apenas à noite, mas também de manhã, à tarde, em todos os momentos livres. Escrevo como vivo. Marie Bashkirtseff, Diário, quarta-feira, 5 de abril de 1876. Assim como Marie, a escritora japonesa Higuchi Ichiyô e a brasileira Carolina Maria de Jesus tiveram seus diários publicados. A escritora japonesa também teve uma produção bastante intensa e rápida pois, como Marie, ela foi vítima da tuberculose e faleceu jovem, aos 24 anos.


Eu, como objeto de interesse, talvez seja muito insignificante para você, mas imagine que não sou eu, imagine que este é um ser humano que conta todas as suas impressões desde a infância. Será, então, um documento humano extraordinário. Trecho do diário de Marie Bashkirtseff.


Visão resumida e censurada dos seus manuscritos


Após a morte da escritora, sua mãe cumpriu a vontade dela. Do ponto de vista editorial, havia uma impossibilidade material de imprimir o Diário na íntegra. Para a tarefa, sua mãe contou com o apoio do prestigiado poeta, romancista e dramaturgo André Theuriet. O resultado dessa parceria foi uma edição que, além de ser um resumo, acabou sendo uma mutilação.


O Diário foi publicado em França, em 1887, pela editora Fesquelle para a coleção Bibliothèque Charpentier. Os dois volumes, porém, representavam apenas cerca de 20% dos manuscritos deixados pela escritora. Levando-se em consideração que ela escrevia diariamente, ficaram repetidas vezes lacunas que envolviam semanas e meses.


Personagens fundamentais para a compreensão tanto da personalidade da autora como dos seus comportamentos, desapareceram totalmente. Mesmo assim, foi um best-seller inusitado. Todas as camadas daquele cosmético não conseguiam esconder o que havia de essencial no texto que prendeu seus leitores.

O Diário rendeu-lhe a fama que tanto ansiava, mas não conseguiu em vida. Foi uma das primeiras tentativas de uma mulher para garantir a celebridade por meio da curadoria de marca pessoal – e a forma que deu à ambição feminina no final do século XIX e início do século XX.

Literatura, seu dom inato


Quanto à escrita, ela disse mais de uma vez que era seu dom inato, uma atividade para a qual ela não precisava se esforçar para estudar, como tinha de fazer com música ou com a pintura. Ela confessa que se tivesse tido tempo, uma vida menos limitada, teria se dedicado ao jornalismo ou à literatura.


Um baú em seus aposentos abrigava dezenas, talvez centenas, de rascunhos de artigos, peças e romances que ela nunca teve tempo de terminar. As crônicas que ela deixou em seu diário sobre as histórias de sua viagem pela Espanha ou as críticas de arte que escreveu para o jornal anarcofeminista La citoyenne, sobre a morte de Léon Gambetta, estadista republicano francês que ajudou a dirigir a defesa da França durante a Guerra Franco-Alemã de 1870 – 1871, testemunham seu poder literário.

Outras publicações


O Diário logo começou a ser reproduzido em diferentes idiomas do mundo e o eco de sua voz foi ouvido em lugares tão distantes como Japão, Argentina, Estados Unidos e no resto da Europa. Por mais de meio século, as jovens leram aquelas páginas com ardor para venerar sua vida e lastimar sua tragédia.


No crepúsculo de um século sombrio em que as meninas só aprenderam a falar de seus corações, Marie falou de seu corpo. Pierre-Jean Remy, escritor francês, prólogo da versão integral do Diário publicado pelo Cercle des Amis (Círculo de Amigos) de Marie Bashkirtseff.

Em 1925, cinco anos após a morte de Madame Bashkirtseff e treze desde que ela depositou os manuscritos originais na Biblioteca Nacional da França (1912), uma cláusula impedia que eles fossem divulgado até 1930. Mas, Pierre Borel, um escritor menor, começou a publicar uma série de volumes com textos inéditos do Diário:


Cahiers Intimes Inédits de Marie Bashkirtseff (cadernos íntimos não publicados de Marie Bashkirtseff);

Les Confessions de Marie Bashkirtseff (As confissões de Marie Bashkirtseff);

Le Premier et le Dernier Voyage de Marie Bashkirtseff (A primeira e a última viagem de Marie Bashkirtseff);

La Véritable Marie Bashkirtseff (A real Marie Bashkirtseff), e provavelmente mais algumas.



Estudiosos estão convencidos de que Pierre Borel nunca trabalhou com o manuscrito original. Utilizou, provavelmente, a cópia que Madame Bashkirtseff e sua sobrinha Dina tinham feito no final da década de 1880, também um texto censurado.

Borel foi por muito tempo um herói para os estudiosos da vida de Marie Bashkirtseff. No entanto, embora uma profusão de textos censurados dessa primeira edição apareça nesses livros, a verdadeira Marie Bashkirtseff permaneceu desconhecida.


Na década de 1960 ela caiu no esquecimento, justamente porque para aquelas mulheres que se libertavam da ocultação e do preconceito, a sua imagem inocente a submergia na penumbra. Seu status de aristocrata, quando já havia caído em obsolescência, também não a favorecia. Com poucas exceções, leitores e editores viraram as costas para ela.

A busca de reconhecimento na pintura


As ambições de Marie ficaram mais focadas aos dezenove anos. Em 1877, ela ingressou na Académie Julian em Paris, o ateliê para moças europeias com sérias ambições artísticas e que, por serem mulheres, não eram admitidas na École des beaux arts. Trabalhava obstinadamente por longas horas no ateliê durante o dia e à noite, calculando quantos meses levaria para alcançar e superar as alunas mais talentosas.


Ela se destacou pelo sentido social que quis dar ao seu trabalho, essa reflexão sobre seu compromisso com as novas concepções políticas que havia abraçado e que muito provavelmente lhe tornou possível compreender a dolorosa realidade daquelas pessoas indefesas que ela escolheu como modelos.


Como pintora, inscreveu-se no naturalismo, corrente literária e artística que defendia uma visão autêntica da realidade da época. Ela pintou o povo humilde dos subúrbios de Paris. Marie conheceu o jovem Jules Bastien-Lepage, líder dessa corrente a quem se uniu por uma amizade que se acentuou com a doença e com a proximidade da morte de ambos.


No Salão de Paris, em 1878, Bastien-Lepage apresentou sua muito discutida pintura Les foins (campos de feno), a primeira de uma série de obras que o tornariam uma estrela e guia para muitos jovens pintores da época.


A obra de Bastien-Lepage é um casal de camponeses fazendo uma pausa ao meio-dia, e aí o realismo da imagem deixa pouco espaço para a beleza tal como entendida pelos pintores acadêmicos. Impressionada com a crueza do naturalismo, ela deve ter se sentido atraída pela pintura naturalista de Bastien-Lepage.

Les foins (campos de feno), obra de Bastien-Lepage – óleo sobre tela.


Foi, nesta época, o ponto de virada entre a pintura tradicional que ainda apresentava temas históricos ou mitológicos ou belas moças e anjos nus e as novas correntes, entre as quais o impressionismo já aparecia com toda a força.


Cinco anos depois, no Salão de 1883, Marie apresentou três trabalhos. Suas expectativas estavam na pintura a óleo Jean et Jacques, dois moleques a caminho da escola, sua estreia como pintora naturalista.

Jean et Jacques (detalhe), óleo sobre tela.

O retrato desses dois alunos pouco ou nada têm a ver com a graça. Mas é justamente essa característica que a autora quis destacar. Ela não pinta nem anjinhos bonitos nem querubins loiros nos Champs-Elysées, mas dois meninos pobres e manchados dos subúrbios miseráveis ​​de Paris.


O júri, no entanto, deu-lhe apenas uma menção honrosa pelo retrato de sua prima Dina, um trabalho em pastel, gênero menor que se encaixava mais apropriadamente no arquétipo de uma respeitável jovem artista. Profundamente irritada, ela pendurou a menção honrosa no rabo de seu cachorro. O júri nunca a perdoou por isso.


A partir de 1883, entre as suas poucas obras que não desapareceram, temos outros dois testemunhos de seu compromisso com o naturalismo: O guarda-chuva, uma das muitas meninas que abrigavam o asilo ao lado de sua casa, na Rue Ampère de Paris.

Marie Bashkirtseff, The Umbrella (detalhe), óleo sobre tela 74 x 93 cm, 1883,

Museu Estatal Russo, São Petersburgo, Rússia.

Para o seu último Salão de Paris, preparou a sua pintura mais reconhecida, The meeting (A reunião). Um grupo de seis crianças carentes do asilo no nº 18 da Rue Ampère, que ela, já com os dois pulmões retirados e passando pelos últimos meses de sua vida, pintou em tamanho natural e ao ar livre.

A pintura lhe valeu a aceitação do público e da crítica, com a qual esperava conseguir a tão esperada medalha. Porém, o júri do Salão, talvez ainda ofendido com a grosseria do ano anterior, e exigente quanto ao tema virou as costas para ela.


Devastada, ela não podia mais pintar por causa da doença. Falhou também a tentativa de entregar seu Diário a um executor talentoso, como Maupassant ou Goncourt. Ela reuniu suas últimas energias para consolar seu admirado Jules Bastien–Lepage, que também estava morrendo. Esse altruísmo inesperado tomou o lugar da egomania que a dominou por toda a sua curta vida.


A partir desse momento, as últimas páginas do Diário se iluminam com o brilho do crepúsculo. Até então, Maria Bashkirtseff só conhecia a ambição: desde aquela visita, ela conheceu a bondade. Aníbal Ponce, pensador e ensaísta argentino.

The meeting - óleo sobre tela.

A edição do Diário influenciou sua notoriedade como pintora?


Talvez um pouco. No entanto, alguns anos antes de sua morte, o público e a crítica já haviam reconhecido seu talento. O Estado francês adquiriu sua tela The meeting para o museu de Luxemburgo dois anos antes do surgimento do Diário.


Será que o seu trabalho febril, a sua carreira meteórica na pintura, deveu-se apenas à percepção de uma morte que se aproximava? Ela mesma confessou que desde pequena se sentiu chamada a se tornar um ser excepcional, algo que em seus primeiros anos identificou com a realeza ou com as luzes do palco.

O lamento pela condição feminina do seu século

Talvez agora nos seja difícil entender quanto desprezo havia na sua desclassificação no Salão de Paris, a eleição de Marie Bashkirtseff, em um universo em que até as próprias mulheres aceitavam seu papel de protagonistas secundárias — meras espectadoras na maioria das vezes. O direito ao voto era apenas a ponta de um iceberg de limitações, proibições e submissões que o sexo forte impunha com muita naturalidade.


As mulheres não tinham direitos cívicos, uma jovem decente não podia propor casamento, todo homem jovem podia e deveria levar uma vida de leviandade mas uma menina respeitável tinha que ser virgem, uma jovem artista não poderia abordar temas transgressores.

Marie Bashkirtseff lamentou isso com um jogo de consonâncias, l'honneur et le bonheur (honra e felicidade) ao derramar lágrimas desconsoladas pela morte de seu admirado Leon Gambetta, o líder republicano: o que choro agora... só poderia descrevê-lo corretamente se tivesse a honra de ser francês e a felicidade de ser homem.


Ela conviveu com a alta sociedade parisiense ao integrar uma associação feminista de cunho socialista. Ali promoveu e custeou a criação de um jornal no qual se destacou como jornalista, outra de suas grandes vocações.


Se, no sentido clássico, a tragédia é a morte do herói, naquela memória reverenciada por seus leitores, o épico e infeliz de Marie Bashkirtseff foi sua principal substância. "Eu não capítulo", certa vez, ela escreveu em pé, caneta e pincel na mão, como uma mítica amazona diante do mal que a levaria para o túmulo.


No momento em que surgia um novo paradigma feminino — exatamente aquele que as mulheres de hoje defendem — para inaugurar a rebelião contra um mundo dominado por homens que instituíram o casamento como seu único e imemorial destino, as meninas estremeceram com as batalhas dessa menina frágil que travou suas cruzadas deplorando a condição feminina de seu século.



Marie Bashkirtseff quando criança.

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